terça-feira, 16 de julho de 2013

Crônica - A vida tem dessas coisas



MICO: PAGUE O SEU AQUI!




Devemos aos cariocas a expressão “pagar um mico” – que, como todo mundo sabe, significa “entrar em uma fria”, “comprar gato por lebre” ou, em um exemplo concreto, ser presenteado com um CD do "Aviões do Forró" naqueles amigos-secretos da “firma”.

Pense nisso...

* * *

Os cariocas patentearam a expressão, mas a verdade é que o “mico” é uma coisa universal.

Quer ver?

O Brasil pagou um mico histórico ao perder a Copa do Mundo de 1950, em casa, para o Uruguai. Zeca Camargo pagou muitos micos televisivos apresentando o “Fantástico” (meu predileto ainda é sua bocejada ao vivo, durante uma chamada do programa). E Bill Gates pagou um mico planetário durante a apresentação do Windows 98 transmitida pela CNN, quando o sistema operacional – vingança, vingança! – “executou uma operação ilegal e foi fechado”. 

Porém, antes de começar a rir dessas pessoas, lembre-se: você também já pagou micos.

Quem passou por essa vida e não os pagou, não viveu.

Não foi homem.

Foi espectro de homem!

 * * *

Tenho motivos para acreditar que 25% dos micos são pagos na infância. Não tem jeito: ser humilhado publicamente é um “ritual de passagem” para todos nós. Assim a Divina Providência antecipa-nos o que está por vir. Assim somos preparados para a vida.

Micar é evoluir, meu bom!

* * *

Não por acaso, muitas de nossas lembranças mais vexatórias são micos que pagamos na escola. Eu tenho uma coleção deles, pagos à vista, a prestação ou no cheque “pré”. Entretanto, se tivesse que categorizá-los, daria Medalha de Ouro e Medalha de Prata para:

1) Minha estreia nos palcos (foi durante uma Festa da Páscoa; era um espetáculo de canto e dança e, como eu não sabia cantar nem dançar, me vestiram de coelho e me obrigaram a sair de um ovo de papel crepom; beautiful).

2) O concurso da “Mãe do Ano” realizado pelo Colégio SAA em 1980 (infelizmente, vencido por minha própria mãe).

Veja bem: entregar um buquê de flores à Dona Marilene não foi nada demais. Duro, mesmo, foi fazê-lo sob o coro dos amigos, que me incentivavam do fundo do salão entoando aquele mantra nacional:

“Gostosa! Gostosa! Gostosa!”

Viados!
* * *

Engana-se quem pensa que os micos são mais raros na vida adulta. Que nada! Eles crescem com a gente, ganham tônus e massa muscular e, às vezes, alteram seu status de “Mico” para “King Kong” (visualize um mico MUITO grande).

De que outro modo eu descreveria a viagem que fiz em companhia de dois amigos, em 1993, seduzido pelo briefing: “feriado com tudo pago em hotel-fazenda; inclui piscina, cavalos e quadra desportiva”?

O convite foi feito por um dos dois, que acabara de arrumar emprego em uma grande seguradora. Era um procedimento-padrão, entre os funcionários daquela “firma”, passar temporadas no tal lugar. Ora: o investimento era pouco, a única exigência era levarmos sacos de dormir... Que mal tinha?

* * *

Mesmo sem carro, descolamos uma carona para o suposto hotel, que ficava em Cotia (isto deveria ter me alertado, tanto quanto a exigência em levar sacos de dormir). E que, no curso da viagem, já foi rebaixado de “hotel” para “sítio”.

_ Como assim? – perguntei, encafifado. É hotel ou sítio?

_ É chácara! Mas tem de tudo. – respondeu o articulador da aventura, que, apesar da ingenuidade perene e do excesso de otimismo, é pessoa boníssima e meu amigo do peito desde os sete anos de idade.

Uma vez lá, constatamos que não era hotel. Nem sítio. Nem chácara.

Era um tremendo mico, mesmo.

* * *

_ Onde estão os cavalos? – perguntei, protegendo a vista do sol com a mão, tão logo apeei do carro.

_ Lá. – meu amigo apontou para uma baia distante e avistei, penalizado, um pangaré peso-pena se arrastar entre o matagal alto e um muro de concreto. Ao dar de cara conosco, a montaria mudou de rumo, com aquela sabedoria misteriosa dos animais. Sumiu em um pinote e não se viu sequer o borrão de outra crina de cavalo pelos próximos dias.

Quando fui apresentado ao pessoal com quem passaria as próximas 72 horas, fiquei tentado a seguir o exemplo do cavalo. Nunca vira tamanha concentração de gente feia, nem na fila de excluídos do exame médico para o Exército. Dente não-cariado, ali, era luxo. Considerando que o “hotel-fazenda” só tinha um banheiro em funcionamento (o outro estava alagado desde os tempos do Brasil Colonial), logo percebi que nossa vida social, ali, seria uma barra.

Dito e feito: tentamos encarar a fila do banho cinco vezes, mas, como nossa vez nunca chegava, nos conformamos em ficar sujos. É ruim no começo. Mas você se acostuma!

* * *

A vantagem de sermos comunicadores, os três, é que rapidamente dominamos o dialeto local e nos misturamos à massa. Pra falar a verdade, nos ajeitamos até muito bem. Chegamos a propor um jogo de vôlei na “quadra desportiva” e a galera adorou. Teria sido uma boa forma de confraternizar, não fosse um pequeno detalhe: a “quadra” era apenas um canteiro de grama bastante íngreme, quase na diagonal.

Tamanho era o ângulo de inclinação que ninguém conseguia sacar a bola ou dar uma manchete sem cair de lado e rolar sobre o próprio ombro. Jogar vôlei, ali, era desafiar a física. Tanto que o placar ficou assim: zero para os dois times e dez para o campo.

 * * *

Quando fomos dormir, ali pelas 02h30, nos disseram que não havia mais camas disponíveis na casa principal. Descemos com um segundo grupo para o alojamento 2, no meio da mata e acessado por um barranco que não era exatamente um barranco – em termos geográficos, era mais uma cânion.

Fomos os primeiros a entrar no casarão vazio e às escuras e, sem cerimônia, acendemos a única lâmpada do aposento central. Trinta e tantas cabeças despenteadas e iradas subitamente emergiram de almofadas, mantas e cobertores espalhados em um contrapiso úmido.

_Apaga essa luz, porra! – gritou alguém.

_ É! – apoiou um outro.

“Será um assentamento de sem-terras?”, pensei.

Mas, nem!

Eram apenas os nossos aposentos, mesmo.

* * *


Até hoje não sei quem eram aquelas pessoas.

Nenhuma delas fora vista na propriedade durante o dia. Eram desconhecidos, todos. E além do mais, ali havia velhos e crianças, quando a idade média dos demais “hóspedes” do sítio era de 20 a 27 anos, no máximo.

Só sei que, cansados, nos arrumamos cada um em um canto, abrimos nossos sacos de dormir e caímos em sono profundo. Só na manhã seguinte nos recriminamos por nossa desconfiança – afinal, já era domingo, fazia um sol danado e ninguém tentara nos degolar ou roubar nossos órgãos durante a noite. Viu? É nisso que dá julgar os outros pela aparência!

Ainda assim, após o café, tivemos uma reunião de diretoria que durou 15 segundos (cravados no relógio!) e concluímos que o melhor era voltar a São Paulo, mesmo sem gozar os três dias prometidos de diversão no campo. Pegamos outra carona (desta vez, até uma vendinha próxima, onde nos deram direções sobre o caminho a seguir), andamos mais alguns quilômetros e, com a graça de Deus, embarcamos em um “busão” com ar-condicionado rumo à capital do estado.

Fedidos pra cacete, claro.

Mas felizes!

* * *

Um King Kong, sim senhor.

Mas, olhe: podia ser pior.

Poderiam ter me dado um CD do “Aviões do Forró” no último amigo-secreto da “firma”.

Pense nisso...


segunda-feira, 1 de julho de 2013

Crônica - Envelheço na Cidade



NESTA DATA QUERIDA




...e o mantenedor deste blog completa, neste 01 de julho de 2013 D.C. (Depois de Cristo), 43 primaveras. Ou antes: 43 invernos, porque 43 primaveras é coisa de boiola.

Não me sobrou muito do ímpeto da adolescência e nem muito daquelas reações destemperadas (bom, mais ou menos...). Mas o orgulho está aqui, intacto.

Orgulho eu tenho de sobra!

 * * *


Em compensação, não tenho nenhum medo de envelhecer.

Muita gente tem, isso é normal – daí o sucesso daqueles quadros do “Fantástico” que ensinam as pessoas a espicharem a média de vida comendo soja, salmão ou berinjela.

Eu, heim? Nem a pau.

* * *

Aqui estou, com meus “óculos de dirigir à noite”, alguns fios grisalhos no cabelo e um monte deles na barba (o que é meio esquisito). Aqui estou, pronto para encarar os 50, 60 ou 70 anos – se as coronárias permitirem e se algum rabo de cometa não ricochetear na Terra, o que, segundo Isaac Asimov e Carl Sagan (que Deus os tenha!), é bastante improvável.

Parte dessa determinação é conformismo; outra parte é a minha incompetência em fazer planos; e a outra parte é a minha memória, mesmo, que é danada de boa.


* * *

Saudosismo da juventude?

Saudosismo de quê?

Talvez sua adolescência tenha sido fenomenal e sua juventude, periclitante. Se for o caso, que bom pra você. Mas as minhas foram bem banais. Noves fora (e uma cicatriz no tornozelo e outra no pescoço; e uma enxaqueca crônica; e uma dor nas costas que, quando dá o ar da graça, me faz socar a parede), vivo, hoje, o melhor momento da vida. Não me sobra muita grana ou mulheres. Mas o que tenho disso aí (quando tenho) é o bastante pra mim.

Bom mesmo é ter o leme nas mãos. É saber que, pilotando meu barco sozinho, caso eu não chegue lá (e “lá” é um conceito bem elástico), é só a mim que devo explicações. E sou muito compreensivo comigo mesmo: sempre me dou outra chance se achar que falhei porque, nas tentativas anteriores, as variáveis estavam contra mim.

E muitas vezes, estavam mesmo.


* * *

Também tem a questão dos planos.

(...)

Planos?

Que planos, cara-pálida?

Cheguei aqui como um daqueles surfistas malucos que encaram as ondas da Praia de Jaws, no Havaí – não como os que batem recordes e aparecem na TV, mas como os que vão até lá e se estrepam. Do ponto de vista de quem assistiu (e do meu próprio ponto de vista, às vezes), fiz tudo errado, na ordem errada e no tempo errado. E o incrível é que, no fim, deu tudo certo.

Levei bomba em quase todos os testes básicos da vida, mas os refiz depois (às vezes dias, anos ou décadas mais tarde) e fui aprovado com louvor. Descobri que a gente só fracassa em algo se, no fundo, não quisermos realmente ter sucesso naquilo. Pois, às vezes, a mente consciente “acha” que alguma coisa deve ser feita, ainda que o inconsciente (o sujeito barbudo e de maus bofes que vive dentro da gente; decifra-o ou ele te devora) se recuse, cruze os braços e diga: “não, não e não”.

E não dá pra discutir com o inconsciente, meu chapa.

Ele sempre tem as melhores cartas nas mãos. E conhece o seu jogo melhor que você. 

* * *

Quanto ao conformismo, a verdade é a seguinte: muitas vezes, conformar-se é amadurecer.

É entender.

* * *

Quem não fantasiou viver para sempre?

Quem não quis atrasar o próprio relógio biológico e enganar a morte?

Quem não quis voltar no tempo e apagar momentos embaraçosos do passado?

De J. K. Rowling a Weligton Alfredo da Cruz (o paraibano que faz os serviços gerais aqui no condomínio), todos vivemos essas fantasias. Mas isto é o que não pode ser. É o que não é.

* * *

Se o futuro a Deus pertence (copyrights: minha avó), resta-nos curtir as pequenas-grandes bênçãos do presente. Um flerte na fila do banco, a consumação de um antigo desejo (a maioria não se consuma, mas até o mais pessimista dos homens é obrigado a aceitar a lei das probabilidades), uma promoção merecida ou uma demissão redentora (dependendo da empresa em que você trabalha).

E colaborar para que essa joça de mundo rode de forma mais azeitada depois que a gente partir. Escrever um livro (eu já escrevi dois), ter um filho (ainda não tive; mas posso ter) e plantar uma árvore (tô fora) são ambições muito legais. Mas nada se compara a iluminar o caminho de alguém. Seja como for.

Porque, um dia, tudo se acaba, mesmo.

E a menos que inventem uma câmara criogênica que realmente funcione (até agora, todos os protótipos falharam), o único jeito de ser imortal é se tornar uma lembrança imorredoura na vida de outra pessoa.


* * *

Opa! Espera aí!

Agora eu já sou um mocinho e tenho alguns planos na manga.

E meus planos são danados bons! Quer ver?

PLANO 1
Quitar meu apartamento em um ano (se continuar poupando, é quase certo que conseguirei).

PLANO 2
Dar entrada em outro imóvel (que pagarei em módicas prestações, já que a ideia é alugá-lo e, assim, ter uma aposentadoria mais confortável).

PLANO 3
O resto do dinheiro que ganhar depois dos 45 anos, gastarei viajando. Verei tudo o que ainda não vi (e que tanto queria ver). E dá-lhe check-in, pois a lista é extensa (vide anexo abaixo).

MEUS OBJETIVOS (ADENDO DO PLANO 3):

1) Conhecer a “La Pedreira”, o Templo da Sagrada Família, o Parque Güell e a Casa Battló, de Gaudi.

2) Ir à Torre de Londres, a Abbey Road e ao monumento de Stonehenge, na Inglaterra.

3) Fotografar a mim mesmo (puta breguice!) na frente do Arco do Triunfo e dentro da Catedral de Notre-Dame.

4) Passear pela Times Square e brincar naqueles parques temáticos da Disney (eu também quero apertar a mão do Mickey; dá licença?).

5) E estranhamente: assistir a um pôr-do-sol na Casa da Pirâmide, em São Thomé das Letras, na companhia de um monte de gente chapada (não acredito em homenzinhos verdes, mas um amigo do colégio, bicho-grilo total, sempre me dizia que aquilo é do “balacobaco”).  

Isto é o que eu espero fazer.

Amanhã.

* * *

Mas, hoje, não é dia de quitar o apartamento ou viajar pelo mundo.

Hoje é dia de celebrar os meus 43 anos em companhia da minha mãe e do meu irmão, a família que me restou e o porto-seguro da minha sanidade. Hoje é dia de comer pizza e de me lambuzar de bolo (este ano será um bolo bem vagabundo, comprado na padaria do Pão de Açúcar; é o que dá pra fazer em véspera de fechamento de revista). De beber umas taças de vinho e dormir ligeiramente bêbado na frente da TV, com o coração feliz.

Hoje, garanto, é isto o que eu vou fazer.

Neste 01 de julho de 2013 D.C. (Depois de Cristo) eu realmente não preciso de mais nada. 


terça-feira, 18 de junho de 2013

Crônica - Réquiem para um Homem de Bem



A BOA COLHEITA




Ontem o país estava à beira de uma revolta civil. Mas meu amigo não tinha olhos ou ouvidos para o que acontecia lá fora (e para o que se noticiava na TV). Meu amigo acabara de perder o pai para uma doença renitente que, há uma década ou mais, o mantinha preso em um leito de hospital. Foram anos de sofrimento, de inércia agônica, mas Tio Pedro descansou, enfim.

 Até aí, OK: é o curso natural das coisas. A gente tem que aceitar.

* * *

Difícil é lidar com isto em um dia como ontem.

Diferentemente de levantes populares, tragédias pessoais não aparecem nos jornais; não bombam na mídia; não ganham repercussão pública. Elas eclodem em retumbante silêncio.

Em dias assim, o que já é inimaginavelmente doloroso doi ainda mais. Nos sentimos ainda mais sós no luto. Contamos ainda menos com os outros para administrar a perda. O mundo está pouco se lixando se a base de toda a nossa existência acabou de ruir.

Não deveria ser assim. Mas é.

* * *

Por telefone, tentando esconder o choro (como se isso fosse necessário), ele só me pediu uma coisa: que eu fizesse um pensamento por seu pai.

Mas eu fui além e fiz mais do que um pensamento. Rebobinei minhas memórias, resgatei arquivos empoeirados, reconstruí um passado e, de repente, revi a sala de sua casa nos anos 70 e 80; a janelona que dava para a rua, a enorme estante cheia de livros (incluindo a coleção completa da Enciclopédia Britânica), a samambaia que pendia do teto e a mesinha de centro que sempre mudava de lugar... Emocionei-me e ri sozinho.

* * *

A verdade é que, apesar de nunca mais tê-lo visto desde que ficou doente (por razões que não convém listar aqui), não me faltam memórias do Tio Pedro.

Tio Pedro levantando pesos na garagem de casa, de camiseta branca Hering e cabelos lustrosos; Tio Pedro chegando do trabalho e se sentando conosco à mesa da sala, para ver o que tanto desenhávamos naquelas folhas de sulfite (era sempre a mesma coisa: histórias de monstros ou de alienígenas).

Tio Pedro dirigindo o “Gildo” (assim se chamava o carro da família) em tardes e noites de sábado e cantando Frank Sinatra, Tony Bennet ou marchinhas de Carnaval do tempo do onça (a minha preferida era sobre a mulher do leiteiro; ela “sofria, passava, controlava a freguesia e ainda lavava garrafa vazia”); Tio Pedro nos ciceroneando pacientemente nas quermesses do colégio. Sempre sério – mas sempre cúmplice e compreensivo. Acho que, por meio da gente, ele revivia e reinventava sua infância. E só muitos anos depois, soube os motivos.

Também teve o dia em que fiz Tio Pedro pular da cadeira presenteando-o com um livro de mulher pelada com uma carga explosiva dentro – BUM! (cortesia da “Casa das Mágicas”, loja no centro da cidade que vendia essas bugigangas de gosto duvidoso a qualquer pivete com Dez Cruzeiros no bolso). E nunca esqueci seu método peculiar para me advertir sobre os malefícios do cigarro: com sutileza mastodôntica, ele punha à minha frente um peso de papel com os líricos dizeres: “Fume Longe de Mim; Morra Sozinho”. E ia tomar um suco.

Grosseiro pacas. Mas engraçado.

* * *

Não é da boca pra fora que digo: a gente nunca perde realmente um pai. Sei disso por experiência própria.

Nós seguimos em frente, mas os levamos conosco.

Absorvemos suas qualidades e defeitos e nos tornamos a continuação do que eles eram. O filho se torna o pai e o desafio, talvez, seja excluir o que havia de menos virtuoso neles (porque sempre há algo menos virtuoso) e guardar o suprassumo do que fizeram, sentiram e pensaram.

Estas são as sementes que eles nos deixam. E nossa tarefa – simples, afinal – é semear o caminho com elas. Se não o nosso próprio caminho, o de quem virá: um filho, um agregado, um aluno ou um aprendiz.

Podemos ser pais de muitas maneiras nessa vida. Porque sempre há alguém querendo aprender.

* * *

E Tio Pedro lhe deixou um punhado de boas sementes, Fabião.

Soube, em anos recentes, que ele não teve uma infância feliz. Ao contrário: foi terrível.

Ele poderia ter se tornado um escroque, poderia ter escolhido devolver ao mundo todo o mal que lhe fizeram. Mas optou por algo diferente: entre acertos e tropeços, à sua maneira imperfeita, ele foi o mais carinhoso dos pais. E aqui está você: o mais carinhoso dos filhos.

É duro olhar o campo à frente e encontrar disposição para semeá-lo – ainda mais, quando se acabou de perder a sombra da árvore que, até então, oferecia refúgio contra o vento, a chuva e o sol. Mas você tem à mão sementes muito boas. Espalhe-as por aí, fertilize-as e veja o que acontece: garanto que muita gente vai se beneficiar desses frutos.

Assim que o inverno passar.

Assim que este campo estiver apinhado de vida, outra vez.

Boa colheita, rapaz.




quinta-feira, 6 de junho de 2013

Crônica - Os nerds e a "Deep Web"



PISTOLEIROS SOLITÁRIOS




No meio do meu caminho tem um nerd. Tem um nerd no meio do meu caminho.

Preciso dele pra postar notícias e notas nos sites das revistas em que trabalho. E isto lhe dá um certo poder sobre mim.

Na vida de minhas retinas fatigadas, nunca me esquecerei que, no meio do meu caminho, tem um nerd.

(...)

Foi mal, Drummond.

* * *

Preciso do nerd porque não saco nada de Internet. Quer dizer, sei postar asneiras no “Facebook”, sei tirar meus e-mails, sei navegar em sites de sacanagem. Mas não conheço extensões de formatos, não sei diferenciar um JPEG de um GIF, não sei qual é a macumba pra se fazer um upload muito complicado. No jogo da informática, estou sempre no banco.

E foi por isso que me deram um nerd de estimação. Ele é a minha ponte para o mundo virtual. Ele é o Robin.

E eu sou o Eduardo, mesmo.

* * *

O nerd simpatiza comigo porque gosto de cinema e (ai de mim!) aprecio de montão aqueles gêneros em que todo nerd “pira”: terror, suspense, ficção, filme de pancadaria.

Mas o nerd não entende que também gosto de comédia romântica. De Gaudi. De filme brasileiro. De comer churros em manhã de domingo. De Woody Allen. De ler as tirinhas do Calvin. De Russ Meyer e de Tinto Brass. De abusar do vinho, de vez em quando. De Jerry Lewis e dos Três Patetas. De namorar em sábado chuvoso. De western italiano. De decotões e de mulher que deixa rastro de perfume. De “Entre Tapas e Beijos” e da novela “Renascer”. De sentar em mesa de boteco com um monte de pinguços e rir e rir e rir.

O nerd é brilhante. Mas tem coisas que o nerd não entende.

* * *

Na via contrária, também não entendo o nerd.

Veja só: ele, agora, anda fascinado com uma coisa chamada “Deep Web” – que, em suas palavras – pausa dramática, o clarão de um relâmpago no céu, Kabooom! –, é “o lado negro da Internet”.

OH!

* * *

O nerd acha que, por eu ser um quarentão e estar meio passado (ao contrário dele, que está na flor da idade), não tem como eu perceber a relevância dessa incrível descoberta. Ele se esquece que eu estava lá – que passei pelas BBS, pelas primeiras formatações de disquete, pela pré-história da informática – enquanto ele ainda mamava no peito. Ou alimentava o seu primeiro Tamagoshi. Ou assistia aos Teletubbies. Sei lá.

Pode até ser que, na “Deep Web”, estejam disponíveis as respostas para todos os enigmas da humanidade, incluindo a cura do câncer, a concepção do Supla (considere que ele nasceu de uma relação sexual entre Eduardo e Marta Suplicy e, como eu, admire-se!) e a verdadeira idade da Susana Vieira.

Mas, do jeito que ele me apresenta a coisa, tudo me parece ser uma grande bobagem, mesmo. Notei o mesmo entusiasmo febril nos olhos de pessoas que acreditavam no E.T. Bilu (“Buuuusquem conhecimeeeento!”), na inocência do Lula e na genialidade de Mallu Magalhães.

* * *

Mas, OK: o nerd me desencorajou a ir fundo nesse assunto, segundo ele, “para o meu próprio bem”. É ele quem me adverte: “não entre nesse submundo.” E eu acho que nem poderia, mesmo, pois, segundo o nerd, nem o Google acessa as páginas negras da “Deep Web”. Onde, presumo, existem chocantes imagens de estupro, de crianças sendo molestadas, de rituais satânicos, receitas de canibalismo e a fórmula da bomba de Cobalto (que, segundo os nerds dos anos 70, poderia ter acabado com a vida na Terra).

Digo ao nerd que não tenho o menor interesse em ver essas coisas e ele revira os olhos, condescendente.

Ih, que burro, dá nota zero pra mim!

* * *

Quando vejo essas pessoas, me lembro dos Pistoleiros Solitários, daquela série “Arquivo X”. Eles moravam em um trailer, passavam as noites entrando em sites do governo e, claro, não comiam ninguém. Mas aquilo era televisão e, nessas circunstâncias, eles podiam ser heróis.

Penso em dizer ao meu nerd, qualquer dia, que a “Deep Web” não existe – e mesmo se existir, pra que chafurdar ainda mais na baixeza humana, se expor a conteúdos que só depõem contra o nosso status de seres pensantes? Pra que piorar o que virtualmente não pode ser piorado?

Nerd do “tio”: brinque, fantasie, sonhe em ser Bond, Jack Bauer ou os heróis de “Game of Thrones”, porque isto é um escape legítimo e faz bem à pele e ao coração. Mas não se acostume tanto com este teclado a ponto de perder a sensibilidade do toque.

* * *

O tempo voa mais rápido que um daqueles caças da “Guerra nas Estrelas”. E a vida, na companhia de gente legal – e quando se faz coisas legais – pode ser tão “super” quanto o é na TV ou em uma tela de cinema.

Out there, brother.

The truth is out there.


quinta-feira, 23 de maio de 2013

Crônica - Music and Me



"PLAY IT AGAIN, GOD!"





A vida da gente tem trilha sonora, e isto é bom. O que não é bom é que só conhecemos a trilha sonora de nossa vida quando é tarde demais. Estamos aqui para viver papéis – quem dirige o filme (e ataca de DJ) é o Sr.Acaso, a Lei das Probabilidades ou Deus. Se é que existe Deus.

Antes fosse diferente: se tivéssemos o roteiro em mãos (ou, em uma metáfora mais adequada, a playlist do show), não sairíamos por aí torcendo o nariz para qualquer música. Não rejeitaríamos gêneros ou artistas. Talvez fôssemos melhores ouvintes do que costumamos ser.

E nunca, jamais julgaríamos.

Vai que... Né?

* * *

Lá para frente, esta ou aquela música “cafona” talvez venha a nos representar, torne-se a síntese de momentos importantes, adquira um significado análogo a uma parte de nossa história. Não existe unanimidade e aposto meu fígado (que está em bom estado, ao contrário do pulmão) que, em 1792, houve quem achasse a Marselhesa um tremendo abacaxi. Quem poderia saber, na época, que ela representaria a Revolução Francesa para sempre? E tão bem?

Veja o Humphrey Bogart naquele filme, “Casablanca”: ele odiava “As Time Goes By”, mas só porque a música estava inexoravelmente ligada ao seu destino.

* * *

Assistindo a um trecho de uma nova série da TV Globo – "Pé na Cova", com Miguel Falabella – tive um revival imediato do Terceiro Grau ao escutar, pela primeira vez em 20 anos (ou mais), “Let the River Run”, uma canção melosa do início dos anos 90. Eu a conhecia bem – lera a bula do “xarope” muito tempo atrás. Naquela época, a música foi tema de um filme com Sigourney Weaver (“Uma Secretária de Futuro”), que eu não assisti, mas que ganhou um Oscar e teve notoriedade suficiente para se fazer notar. O refrão era assim:

“Let the river run,
let all the dreamers
wake the nation
Come, the New Jerusalem”

Eu deveria ter gostado, então, pois era uma música de Carly Simon – que, como qualquer cinéfilo medianamente letrado sabe, também interpretou um dos temas mais famosos da série 007, “Nobody Does it Better” (do filme “O Espião que me Amava”). Mas naquele tempo, não gostei. Ouvia a música ad nauseam no rádio do carro do meu irmão, indo para a faculdade, todas as noites. "Let the River Run" ganhou a "cara" da época. E aquela, para mim, foi uma época cinza. Não uma época negra, veja bem– mas cinza.

* * *

Por que, então, meu coração bateu forte quando a escutei novamente, duas décadas depois, algumas horas atrás, displicentemente deitado no sofá do meu apartamento? Ora – porque, a essas alturas, devo estar na metade do livro que conta a minha história. E consigo colocar quase tudo em perspectiva, até aqueles primeiros e claudicantes capítulos.

Qualquer boa história parte de um prólogo sem contexto; qualquer boa narrativa tem momentos insossos; e até a melhor das canções tem uma estrofe da qual ninguém se lembra direito... Porém, excluí-las da obra final é descontextualizá-la, é arruiná-la dramaticamente. Até a estrofe ou capítulo mais recalcitrante tem relevância na trajetória que conduz ao clímax.

* * *

Então, “Let the River the Run” talvez seja uma boa metáfora do que foi ser jovem, para mim. Como aquela música apoteótica (e um pouco cafona, sim), que não fui capaz de apreciar na época, ter vinte e poucos anos é uma dádiva ingrata. Não existe tempo mais lírico e cheio de sabores do que este. Não se experimenta mais emoção, antes ou depois. Jamais se viverá tão perigosa ou ardentemente. O que sobrevém a este período costuma ser melhor (se você der sorte), mas dificilmente será tão memorável.

Infelizmente, a regra é que, na juventude, estamos tão confusos e preocupados em nos destacar que não reparamos nas nuances e na beleza simples de uma composição. Queremos ser relevantes, temos sede de sermos críticos e caímos em uma armadilha – vemos apenas o que achamos que deveríamos ver; o que achamos que seria inteligente ver. Não notamos, sequer, que o cinza é uma ilusão de óptica; que o cinza, a rigor, não existe. É um logro, um amálgama de brancos e de pretos, de luz e de sombras. No entanto, é outra regra que só percebemos isto quando ficamos maduros. Assim, não há muito a se fazer.

Exceto, claro, tirar vantagem do mundo randômico onde vivemos, no qual o passado e o presente se conectam a um clique do mouse.

* * *

Baixei “Let the River Run” na Internet.

Amanhã, vou escutá-la no som do carro.

Desta vez, sem medo de ser feliz.

P.S.: Eu queria registrar que esta série, “Pé na Cova”, é um horror. Mas, claro, esta é só a minha opinião no momento. Nem imagino o que vou achar amanhã.




quinta-feira, 16 de maio de 2013

Crônica - Churrascarias



"CORAÇÃOZINHO, SENHOR?"




Churrascaria é o que há, meu amigo.

Muitos preferem Sushi e Sashimi a uma sangrenta peça de picanha (e o Dr. Drauzio Varella deve estar orgulhoso desse pessoal). Mas acredito que 65% dos humanos ainda se recusam a comer em restaurantes japoneses, aqueles locais onde a comida é servida fria e os guardanapos são servidos quentes.

O tempo e a experiência transformam qualquer autêntico carnívoro em um connaisseur desses ambientes. Porque os rodízios podem ser categorizados como tudo o mais nessa vida – inclua-se aí os uísques, charutos e até os refrigerantes. O Fogo de Chão, por exemplo, é a Coca-Cola das churrascarias. O Picanha de Ouro, na Avenida Dr. Ricardo Jafet (zona sul de São Paulo), é o Guaraná Dolly da categoria.

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Carnívoros sabem que uma churrascaria falhou em seu objetivo primordial quando, uma vez lá, se veem entre mulheres, crianças e idosos na fila do bufê de saladas. Porque salada – e isto não é nenhum segredo – não é propriamente comida; é o que a comida come.

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No Picanha de Ouro, as carnes são tão ruins, mas tão ruins, que o bufê de saladas é um must.

De repente, você se vê usando a força e o tamanho para impedir que uma mulher consiga o rabanete mais polpudo ou a folha de rúcula mais verdinha do balcão.

É vexatório, mas é a luta pela sobrevivência: um homem não pode ser responsabilizado pelo que faz em uma churrascaria como a “Picanha de Ouro”, onde sempre existe o risco de a costela ou da fraldinha mugirem e pularem da mesa escoiceando, ao serem cutucadas por um garfo. Porque estabelecimentos como a “Picanha de Ouro” não entendem a sutileza do termo “mal-passado”.

* * *

Outra curiosidade sobre as churrascarias é que elas têm um tácito código hierárquico. É, sim: igualzinho aos daquelas sociedades secretas (Rosa Cruz, Maçonaria, Pró-Vida, Hogwarts...).

Sentado à mesa, vendo as carnes passarem e assistindo ao Vídeo Show em uma TV de Plasma fixada à parede, o cliente nem imagina que um código primal de organização rege aquele estabelecimento. As regras foram definidas muito tempo atrás, quando ainda usávamos roupas de peles e caçávamos mamutes nas pradarias.

Nos rodízios de carnes, esta hierarquia começa no “coraçãozinho”.

* * *

Não há o que discutir: o pobre diabo a quem confiam o “coraçãozinho” (de galinha ou de frango, ninguém sabe ao certo) é um neófito, um iniciante, um GV (“garçom virgem”). O elo mais fraco da corrente.

Comiserado, magrinho, ele se esgueira pelo salão e amarga a mais inglória das tarefas: oferecer “coraçãozinho” a machos esfomeados que, por volta das 13h30, salivam pavlovianamente à simples menção da palavra “picanha”.

* * *

"Coraçãozinho, senhor?" 

Silêncio sepulcral na mesa. Alguém esbarra em um copo, que quase cai.

Caberá ao macho mais sensível do grupo (sempre existe um) acabar com aquele constrangimento, dando um tapinha amistoso na mão do rapaz e o libertando daquele pesadelo:

“Vamos esperar pela próxima, obrigado.”


* * *

Mas um lampejo de esperança ilumina a alma de nosso herói, tão logo lhe confiam o primeiro espeto de linguiça temperada.

Veja bem – não é assim uma Brastemp. Mas a linguiça temperada prova algo importante: o problema não era ele, afinal... Era o coraçãozinho.

Agora, ele se sente aceito e querido. Um dia, poderá ser o maioral do pedaço. Usando bombachas e com um lenço no pescoço – facão em uma mão e espeto na outra –, manobrará cortes de picanha entre as mesas e será olhado com inveja pelos colegas. A clientela disputará sua atenção. As mulheres lhe dirigirão sorrisos enigmáticos.

* * *

Foi uma batalha dura, seu orgulho ficou ferido, mas ele perseverou e venceu. Recobrou o respeito próprio. Sobreviveu ao teste do coraçãozinho.

Nas churrascarias, tanto quanto no tempo dos Neandertais, é isto o que separa os meninos dos homens.


terça-feira, 14 de maio de 2013

Quadrinhos - Entrevista / Maurício de Sousa



O PAI DA MÔNICA




Artista, cronista, empresário, pioneiro. Todas essas definições se aplicam a Maurício de Sousa, um personagem e tanto que, nos anos 60, começou a desbravar o mercado de quadrinhos nacional. Suas criações atravessaram décadas (seja na forma dos tradicionais gibis, seja por meio de filmes, parques temáticos e projetos para a Internet) e se inscreveram em nossa Cultura Pop. O mundo fictício onde vivem a Mônica, o Cebolinha, o Cascão e o Anjinho é conhecido por todos (e se tornou parte de nossa memória afetiva).

Nesta entrevista a “Zoom Magazine” (publicada na edição 64 da revista), Maurício contou que seu interesse por arte se manifestou aos nove anos de idade (quando ele ganhou um kit de desenho do pai) e que, antes de ser cartunista, exerceu a profissão de repórter policial (dá pra imaginar?). Também deixou claro que, hoje, sua faceta artística precisa conviver com a de homem de negócios. Com a palavra, o “pai” da Mônica.

QUANDO O SENHOR COMEÇOU A PRODUZIR TIRAS, O MERCADO DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS PRATICAMENTE SE RESUMIA À DISNEY. FOI DIFÍCIL QUEBRAR ESTE MONOPÓLIO?
No início dos anos 60, a Disney tinha presença pesada e quase exclusiva nas bancas. Experiências de desenhistas brasileiros, realizadas nos anos 50, não tinham vingado. Não só por motivos econômicos, mas porque, durante aquele período, desenvolveu-se uma campanha feroz contra as histórias em quadrinhos no país. Na época, eu já tinha um ano de publicação de tiras diárias na “Folha da Manhã” – hoje, “Folha de São Paulo”. Na mesma década, aceitei um convite da editora Outubro para lançar uma revista mensal chamada “Bidu”, que só chegou à sexta edição. Eu não tinha estrutura para escrever, desenhar e arte-finalizar uma revista por mês – sendo, ainda, repórter policial nas horas normais do dia. Enfim, as tiras de jornal começavam a fazer bonito, mas ainda rendiam pouco quando publicadas em um só jornal.

E QUANDO O NEGÓCIO COMEÇOU A DAR CERTO?
Quando passei à fase seguinte do meu plano de expansão: criei um sistema de redistribuição que permitia que a tira publicada na “Folha” também fosse publicada em jornais de outras capitais ou em grandes cidades do interior. Ao mesmo tempo, iniciei a contratação de artistas para compor uma equipe que me permitiria aumentar e diversificar a produção. E, durante a década de 60 inteirinha, trabalhei com jornais de todo o país, oferecendo tiras diárias e páginas tabloides para suplementos semanais. Chegamos a atingir mais de 300 jornais durante aquele período, vencendo, assim, diversas barreiras que impediam os personagens brasileiros de serem aceitos por jornais e pelo público diferenciado de quase todos os estados do país. A simpatia dos personagens, o jeito de se comunicarem, o cuidado com os temas, com o conteúdo e com a arte ajudaram nesta receptividade.

A MÔNICA FOI INSPIRADA EM UMA DE SUAS FILHAS. E O CASCÃO? E O CEBOLINHA?
Eu não inventei nada – só observei e coloquei, nos personagens, características de seus “inspiradores”. Todo mundo conhece uma Mônica, uma Magali, um Cascão ou um cachorrinho parecido com o Bidu. Os personagens que fui criando nos primeiros cinco anos baseavam-se em observações. O Cebolinha era um garoto que andava perto da minha casa durante minha infância. Foi meu pai quem lhe deu esse nome, por causa do cabelo espetado. Ele era amigo do Cascão, que também existiu e inspirou o personagem; Franjinha era um sobrinho meu, que morava em Bauru; Chico Bento era um tio-avô que não cheguei a conhecer, mas cujas histórias me foram contadas por minha avó. A maioria dos personagens foi baseada em gente que existiu. No caso das meninas, fui para casa e comecei a prestar atenção em minhas filhas. E lá estava a Mariângela, minha primeira filha, brincando com a Mônica, que arrastava um coelho pela casa tentando bater na Magali, que comia uma melancia inteira. Assim, criei os personagens baseados nas meninas, fiz uma caricatura psicológica e deu certo. Primeiro foi a Mônica, depois a Magali; a Mariângela virou a Maria Cebolinha.

QUAIS ERAM SUAS REFERÊNCIAS EM TERMOS DE TRAÇO?
Em termos de desenho, levo muita coisa do velho Brucutu (um homenzinho pré-histórico), do Ferdinando (um caipira americano), de Tereré (uma sátira ao Príncipe Valente) e da Luluzinha e do Bolinha. Em termos de narrativa, tenho muito do Ferdinando (Al Capp), do Brucutu e do Gordo, um personagem criado por Gustavo Arriolla, mexicano radicado nos EUA. Mas onde vou buscar, até hoje, a liberdade e ousadia para criar é no estilo e na narrativa de Will Eisner, com o personagem “Espírito” (Spirit). E mais recentemente, em suas sensacionais graphic novels.

ALÉM DOS PERSONAGENS DA TURMA, OUTROS FORAM ADICIONADOS AOS GIBIS – O PELEZINHO E, DEPOIS, A MENINA DORINHA, QUE ERA CEGA. O QUE DETERMINA O SURGIMENTO DESSES PERSONAGENS? FAMA? CONSCIÊNCIA SOCIAL?
Sempre há novos personagens querendo “pular” da prancheta. Mas não podemos dar toda a atenção que merecem. Por isso, temos que ir dosando os lançamentos. Mas o tempo chega para alguns, que vão se revelando. Às vezes, por necessidade de falarmos coisas diferentes, de temas novos, de novas propostas. Não tanto por necessidade (em nosso caso) de renovação. Os personagens clássicos da turma estão fortes como nunca. Mas o artista é um insatisfeito por natureza.

NO CINEMA, O SENHOR TAMBÉM FOI PIONEIRO. COMEÇOU A PRODUZIR LONGAS DE ANIMAÇÃO QUANDO NINGUÉM INVESTIA NESSAS PRODUÇÕES. O MERCADO MELHOROU, DE LÁ PARA CÁ?
O mercado melhorou e aumentou. Além disso, há facilidades que eu não tinha na década de 1980, quando lancei meus primeiros filmes. Há bilheterias honestas, computadores, incentivos e um público ávido por nossos produtos.

E NO QUE DIZ RESPEITO À TV? O PANORAMA É OTIMISTA?
O panorama é otimista, mas as séries ou programas ainda são difíceis de fazer. Custam caro e precisamos resolver o problema da redistribuição, para que os investimentos necessários sejam cobertos. Mais ou menos como quando precisei criar a redistribuidora de tiras de jornal. Só que, agora, a redistribuição terá que ser para veículos de comunicação de outros países. A estratégia e a infraestrutura necessárias para isto são mais complicadas. Mas não impossíveis...

RETROSPECTIVAMENTE, O SENHOR CHEGOU A ACREDITAR, NO INÍCIO DA CARREIRA, QUE SEUS PERSONAGENS TERIAM TANTA LONGEVIDADE?
Como artista, não pensava assim, no início. Mas, como empresário, responsável por um complexo de produção de histórias em quadrinhos, filmes, livros e parques temáticos, tenho que pensar na manutenção, na perinização da organização. Até por respeito aos nossos leitores, que se acostumaram e gostam do que produzimos. E por respeito aos que trabalham comigo.

QUAIS FORAM AS EVOLUÇÕES OCORRIDAS NO SEGMENTO DE ANIMAÇÃO NOS ÚLTIMOS ANOS? AS FERRAMENTAS DIGITAIS FACILITARAM O PROCESSO?
O processo digital, sem dúvida, revolucionou o setor. Os resultados são sensacionais. Mas, em termos de custo, a coisa fica mais ou menos empatada.

O PAPEL FOI DEFINITIVAMENTE ABOLIDO NESSES TEMPOS DE CRIAÇÃO DIGITAL? OU, DE VEZ EM QUANDO, AINDA É PRECISO VOLTAR À PRANCHETA?
O papel é eterno. Pelo menos, até descobrirem algo tão sensacional. Desenhar “no vácuo” não é a mesma coisa.

Artigo originalmente publicado em "ZOOM MAGAZINE", em fevereiro de 2005