terça-feira, 18 de junho de 2013

Crônica - Réquiem para um Homem de Bem



A BOA COLHEITA




Ontem o país estava à beira de uma revolta civil. Mas meu amigo não tinha olhos ou ouvidos para o que acontecia lá fora (e para o que se noticiava na TV). Meu amigo acabara de perder o pai para uma doença renitente que, há uma década ou mais, o mantinha preso em um leito de hospital. Foram anos de sofrimento, de inércia agônica, mas Tio Pedro descansou, enfim.

 Até aí, OK: é o curso natural das coisas. A gente tem que aceitar.

* * *

Difícil é lidar com isto em um dia como ontem.

Diferentemente de levantes populares, tragédias pessoais não aparecem nos jornais; não bombam na mídia; não ganham repercussão pública. Elas eclodem em retumbante silêncio.

Em dias assim, o que já é inimaginavelmente doloroso doi ainda mais. Nos sentimos ainda mais sós no luto. Contamos ainda menos com os outros para administrar a perda. O mundo está pouco se lixando se a base de toda a nossa existência acabou de ruir.

Não deveria ser assim. Mas é.

* * *

Por telefone, tentando esconder o choro (como se isso fosse necessário), ele só me pediu uma coisa: que eu fizesse um pensamento por seu pai.

Mas eu fui além e fiz mais do que um pensamento. Rebobinei minhas memórias, resgatei arquivos empoeirados, reconstruí um passado e, de repente, revi a sala de sua casa nos anos 70 e 80; a janelona que dava para a rua, a enorme estante cheia de livros (incluindo a coleção completa da Enciclopédia Britânica), a samambaia que pendia do teto e a mesinha de centro que sempre mudava de lugar... Emocionei-me e ri sozinho.

* * *

A verdade é que, apesar de nunca mais tê-lo visto desde que ficou doente (por razões que não convém listar aqui), não me faltam memórias do Tio Pedro.

Tio Pedro levantando pesos na garagem de casa, de camiseta branca Hering e cabelos lustrosos; Tio Pedro chegando do trabalho e se sentando conosco à mesa da sala, para ver o que tanto desenhávamos naquelas folhas de sulfite (era sempre a mesma coisa: histórias de monstros ou de alienígenas).

Tio Pedro dirigindo o “Gildo” (assim se chamava o carro da família) em tardes e noites de sábado e cantando Frank Sinatra, Tony Bennet ou marchinhas de Carnaval do tempo do onça (a minha preferida era sobre a mulher do leiteiro; ela “sofria, passava, controlava a freguesia e ainda lavava garrafa vazia”); Tio Pedro nos ciceroneando pacientemente nas quermesses do colégio. Sempre sério – mas sempre cúmplice e compreensivo. Acho que, por meio da gente, ele revivia e reinventava sua infância. E só muitos anos depois, soube os motivos.

Também teve o dia em que fiz Tio Pedro pular da cadeira presenteando-o com um livro de mulher pelada com uma carga explosiva dentro – BUM! (cortesia da “Casa das Mágicas”, loja no centro da cidade que vendia essas bugigangas de gosto duvidoso a qualquer pivete com Dez Cruzeiros no bolso). E nunca esqueci seu método peculiar para me advertir sobre os malefícios do cigarro: com sutileza mastodôntica, ele punha à minha frente um peso de papel com os líricos dizeres: “Fume Longe de Mim; Morra Sozinho”. E ia tomar um suco.

Grosseiro pacas. Mas engraçado.

* * *

Não é da boca pra fora que digo: a gente nunca perde realmente um pai. Sei disso por experiência própria.

Nós seguimos em frente, mas os levamos conosco.

Absorvemos suas qualidades e defeitos e nos tornamos a continuação do que eles eram. O filho se torna o pai e o desafio, talvez, seja excluir o que havia de menos virtuoso neles (porque sempre há algo menos virtuoso) e guardar o suprassumo do que fizeram, sentiram e pensaram.

Estas são as sementes que eles nos deixam. E nossa tarefa – simples, afinal – é semear o caminho com elas. Se não o nosso próprio caminho, o de quem virá: um filho, um agregado, um aluno ou um aprendiz.

Podemos ser pais de muitas maneiras nessa vida. Porque sempre há alguém querendo aprender.

* * *

E Tio Pedro lhe deixou um punhado de boas sementes, Fabião.

Soube, em anos recentes, que ele não teve uma infância feliz. Ao contrário: foi terrível.

Ele poderia ter se tornado um escroque, poderia ter escolhido devolver ao mundo todo o mal que lhe fizeram. Mas optou por algo diferente: entre acertos e tropeços, à sua maneira imperfeita, ele foi o mais carinhoso dos pais. E aqui está você: o mais carinhoso dos filhos.

É duro olhar o campo à frente e encontrar disposição para semeá-lo – ainda mais, quando se acabou de perder a sombra da árvore que, até então, oferecia refúgio contra o vento, a chuva e o sol. Mas você tem à mão sementes muito boas. Espalhe-as por aí, fertilize-as e veja o que acontece: garanto que muita gente vai se beneficiar desses frutos.

Assim que o inverno passar.

Assim que este campo estiver apinhado de vida, outra vez.

Boa colheita, rapaz.