quarta-feira, 24 de abril de 2013

Literatura - Monteiro Lobato



ANJOS E DEMÔNIOS




Monteiro Lobato – tadinho! – caiu nas malhas da correção política.

É notícia velha, eu sei. Lá se vão meses desde que o CNE – Conselho Nacional de Educação (?!) decidiu vetar o livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, nas escolas públicas.

A Cuca deve estar rolando de rir em algum grotão cavernoso nas imediações de Taubaté – onde, dizem, fica o verdadeiro Sítio do Picapau Amarelo. Pois o CNE conseguiu o que nem o Boitatá, o Minotauro e outras entidades místicas que visitaram aquele insólito pedaço de chão foram capazes de lograr: o início da desmoralização de um dos maiores autores brasileiros – e sob a pecha de “racista”, o que não é pouca coisa.

A questão ainda suscita debates – e, bem, algumas surpresas: não é que os velhinhos da Academia Brasileira de Letras despertaram de seu sono milenar e se manifestaram contra o veto (ao lado de renomados autores especializados em literatura infanto-juvenil, como Ana Maria Machado e Ruth Rocha)?

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Nos EUA, a Meca do pensamento liberal, Mark Twain (1835-1910), autor dos famosos “As Aventuras de Tom Sawyer” e “As Aventuras de Huckleberry Finn”, também está sendo “demonizado” por intelectuais desocupados. O motivo: a grande incidência de termos como “nigger” e “injun” (hoje, sinônimos pejorativos para “negro” e “índio”) em suas obras.

É uma curiosa “mutação” da censura: historicamente, a mordaça cultural sempre foi aplicada por gente iletrada em gente letrada; hoje, é aplicada por gente letrada em gente “ainda mais letrada”.

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Se fosse para bancar o censor, o mantenedor deste blog nem titubearia: condenaria à fogueira a hilariante “Cartilha do Politicamente Correto” perpetrada pelo Governo Lula. O texto – um flagelo além da salvação, pois foi redigido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos (que, como autora, é uma grande humorista) – foi o precursor dessa caça às bruxas “light” que a esquerda festiva tenta, em anos recentes, implantar no Brasil.

Elaborada em 2005, essa bobajada partia de uma surreal pesquisa sobre “termos e expressões politicamente incorretas” utilizadas de forma recorrente no país (as quais, no entender dos autores, deveriam ser suprimidas de nosso cotidiano). Quem definiu o Index Proibitorium de jargões foi um militante comunista das antigas, o jornalista Antonio Carlos Queiroz.

E foi um desastre: nem Lula entendeu a razão de o termo “peão” ser considerado pejorativo – mas este não era o maior caroço do angu (com o perdão do neologismo metafórico-culinário): a cartilha também condenava expressões e termos como:

“A COISA FICOU PRETA” (“A frase é utilizada para expressar o aumento das dificuldades de determinada situação, traindo forte conotação racista contra os negros [sic]);

“BAIANADA” (“Expressão pejorativa que atribui aos baianos inabilidade no trânsito e em outras atividades [sic]);

“BEATA” (“O termo deprecia as mulheres que vão com muita frequência às missas e ofícios da Igreja Católica” [sic]);

E, segure-se na cadeira, leitor:

“BARBEIRO” (“O uso da expressão, no sentido de motorista inábil, obviamente é ofensiva ao profissional especializado em cortar cabelo e aparar barba” [sic])

Isn’t that special?

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Se Monteiro Lobato era racista ou não, isso deixa de ser o “X” da questão quando olhamos a coisa em perspectiva.

O racismo é hediondo e condenável – ponto. Da minha parte, jamais me referi informalmente a um negro como “Negão”; a um obeso, como “Gordão”; ou a um gay, como “Biba” ou “Sapatão”. As pessoas têm nomes. E manda a boa educação (coisa que tive em casa) que é através destes que devemos nos dirigir a elas (sendo a recíproca desejável).

Mas a literatura, como qualquer forma de arte, é uma “parabólica” de seu tempo; excetuando-se casos extremos, como a obra “Minha Luta” (“Mein Kampf)”, escrita por Hitler, se há menções racistas ou xenófobas em um livro, isto é sinal de que existia um viés racista na sociedade onde aquele autor viveu. O livro simplesmente sublinha este aspecto. Culpar o autor por isso – 100 anos após a publicação da obra – é quase o mesmo que querer condenar à cadeira elétrica um médico da Idade Média por ter perdido um paciente para a lepra. O médico e a doença são produtos de seu tempo.

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E depois: banir “Caçadas de Pedrinho” – ou qualquer petardo de Monteiro Lobato – das escolas é uma crueldade com as crianças. Coitadinhas: elas  já são vítimas, dia a dia, da deseducação propagada pelas rainhas louras da TV e por pequenos príncipes nórdicos como Justin Beaber, que lhes dizem o que devem pensar, fazer e, acima de tudo, comprar.

Cresci embalado pelas histórias de Monteiro Lobato. Sonhava sentar no colo da Tia Nastácia e comer seus bolinhos (no bom sentido!). Jamais me pareceu enfática a ideia de que fosse uma negra – e nem me ocorria que ela era “apenas” a cozinheira da casa. Tia Nastácia era uma extensão de Dona Benta. Uma de duas avós fofas que eu comparava à minha própria avó (por sinal, dona de um colo aconchegante e igualmente versada na arte dos bolinhos).

Muitas vezes, parceiro, a maldade não está no mundo. Está nos olhos de quem vê.

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Se esse movimento “revisionista” avançar, teremos problemas sérios para entender a evolução da sociedade e de nossa própria espécie (cujos detalhes, muitas vezes, só podem ser pinçados de livros e filmes, fictícios ou não). Se alguns desses produtos são racistas, assim devem ser mantidos – nem que pelo simples propósito de nos darem uma visão de como as coisas “nunca mais deveriam ser”.

Há alguns anos, escrevi um livro sobre um personagem icônico da cultura ocidental – James Bond, o agente 007. Enquanto relia os romances de Ian Fleming (criador do personagem), arrepiavam-me os cabelos da nuca afirmações como: “Bond considerava todos os coreanos macacos, abaixo do homem na escala da evolução.”

É horrível, sim – mas também é um retrato da época em que esses livros foram escritos (a Inglaterra dos anos 50, ainda traumatizada com a Segunda Guerra). Se um autor popular ousava escrever esse tipo de máxima, é porque tinha o apoio de grande parte da sociedade; e isto nos permite entender o quanto a sociedade evoluiu de lá para cá.

E depois: os livros de James Bond (tanto quanto os de Monteiro Lobato) não eram apenas racistas. Também eram divertidos, informativos, bem-escritos e, às vezes, geniais. Como separar o joio do trigo sem descaracterizar completamente essas obras? Mais do que “censura”, essa variação “friendly” da boa e velha caça às bruxas é uma deturpação pura e simples. Alterar o conteúdo de uma obra para “adaptá-la” a uma nova era e contexto é apropriação indevida de propriedade intelectual. 

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A luta para erradicar o “mal” dos livros de Lobato me lembra a situação vivida pelo personagem Alex, de “Laranja Mecânica” (romance escrito por Anthony Burgess em 1962 e adaptado para o cinema por Stanley Kubrick).

Ambientada em um futuro decadente, a história mostrava um esforço patético do Governo Inglês para erradicar a violência da sociedade (no caso, cortesia de hordas de delinqüentes juvenis que matavam, mutilavam e violavam sem qualquer traço de consciência).
Ao colocar as mãos no repulsivo (e ao mesmo tempo, carismático) Alex, as autoridades o submetiam a uma lavagem cerebral cujo propósito era coibir suas emoções, deixando-o virtualmente inofensivo.

O experimento dava certo – até a página 5. Pois o que ninguém sabia era que Alex era grande apreciador da música de Beethoven; e ao eliminar sua compulsão para o “mal”, o experimento também aniquilou tudo o que ele tinha de “bom”: a sensibilidade artística, o gosto sofisticado para a música (ocultos sob as vestes de um criminoso).

É que, às vezes, no processo de eliminar um demônio, acaba-se destruindo um anjo.

Eis aí um tópico para a “Turma dos Direitos Humanos” pensar na cama.

É exercício mais estimulante e produtivo do que varrer a sujeira para debaixo do tapete.