ANJOS E DEMÔNIOS
Monteiro Lobato – tadinho! – caiu nas malhas da correção
política.
É notícia velha, eu sei. Lá se vão meses desde que o CNE –
Conselho Nacional de Educação (?!) decidiu vetar o livro “Caçadas de Pedrinho”,
de Monteiro Lobato, nas escolas públicas.
A Cuca deve estar rolando de rir em algum grotão cavernoso
nas imediações de Taubaté – onde, dizem, fica o verdadeiro Sítio do Picapau
Amarelo. Pois o CNE conseguiu o que nem o Boitatá, o Minotauro e outras
entidades místicas que visitaram aquele insólito pedaço de chão foram capazes
de lograr: o início da desmoralização de um dos maiores autores brasileiros – e
sob a pecha de “racista”, o que não é pouca coisa.
A questão ainda suscita debates – e, bem, algumas surpresas:
não é que os velhinhos da Academia Brasileira de Letras despertaram de seu sono
milenar e se manifestaram contra o veto (ao lado de renomados autores
especializados em literatura infanto-juvenil, como Ana Maria Machado e Ruth
Rocha)?
* * *
Nos EUA, a Meca do pensamento liberal, Mark Twain
(1835-1910), autor dos famosos “As Aventuras de Tom Sawyer” e “As Aventuras de
Huckleberry Finn”, também está sendo “demonizado” por intelectuais desocupados.
O motivo: a grande incidência de termos como “nigger” e “injun” (hoje, sinônimos
pejorativos para “negro” e “índio”) em suas obras.
É uma curiosa “mutação” da censura: historicamente, a
mordaça cultural sempre foi aplicada por gente iletrada em gente letrada; hoje,
é aplicada por gente letrada em gente “ainda mais letrada”.
* * *
Se fosse para bancar o censor, o mantenedor deste blog nem
titubearia: condenaria à fogueira a hilariante “Cartilha do Politicamente
Correto” perpetrada pelo Governo Lula. O texto – um flagelo além da salvação,
pois foi redigido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos (que, como
autora, é uma grande humorista) – foi o precursor dessa caça às bruxas “light”
que a esquerda festiva tenta, em anos recentes, implantar no Brasil.
Elaborada em 2005, essa bobajada partia de uma surreal
pesquisa sobre “termos e expressões politicamente incorretas” utilizadas de
forma recorrente no país (as quais, no entender dos autores, deveriam ser
suprimidas de nosso cotidiano). Quem definiu o Index Proibitorium de jargões
foi um militante comunista das antigas, o jornalista Antonio Carlos Queiroz.
E foi um desastre: nem Lula entendeu a razão de o termo
“peão” ser considerado pejorativo – mas este não era o maior caroço do angu
(com o perdão do neologismo metafórico-culinário): a cartilha também condenava
expressões e termos como:
“A COISA FICOU PRETA” (“A frase é utilizada para expressar o
aumento das dificuldades de determinada situação, traindo forte conotação
racista contra os negros [sic]);
“BAIANADA” (“Expressão pejorativa que atribui aos baianos
inabilidade no trânsito e em outras atividades [sic]);
“BEATA” (“O termo deprecia as mulheres que vão com muita
frequência às missas e ofícios da Igreja Católica” [sic]);
E, segure-se na cadeira, leitor:
“BARBEIRO” (“O uso da expressão, no sentido de motorista inábil,
obviamente é ofensiva ao profissional especializado em cortar cabelo e aparar
barba” [sic])
Isn’t that special?
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Se Monteiro Lobato era racista ou não, isso deixa de ser o
“X” da questão quando olhamos a coisa em perspectiva.
O racismo é hediondo e condenável – ponto. Da minha parte,
jamais me referi informalmente a um negro como “Negão”; a um obeso, como
“Gordão”; ou a um gay, como “Biba” ou “Sapatão”. As pessoas têm nomes. E manda
a boa educação (coisa que tive em casa) que é através destes que devemos nos
dirigir a elas (sendo a recíproca desejável).
Mas a literatura, como qualquer forma de arte, é uma
“parabólica” de seu tempo; excetuando-se casos extremos, como a obra “Minha
Luta” (“Mein Kampf)”, escrita por Hitler, se há menções racistas ou xenófobas
em um livro, isto é sinal de que existia um viés racista na sociedade onde
aquele autor viveu. O livro simplesmente sublinha este aspecto. Culpar o autor
por isso – 100 anos após a publicação da obra – é quase o mesmo que querer
condenar à cadeira elétrica um médico da Idade Média por ter perdido um
paciente para a lepra. O médico e a doença são produtos de seu tempo.
* * *
E depois: banir “Caçadas de Pedrinho” – ou qualquer petardo
de Monteiro Lobato – das escolas é uma crueldade com as crianças. Coitadinhas:
elas já são vítimas, dia a dia, da
deseducação propagada pelas rainhas louras da TV e por pequenos príncipes
nórdicos como Justin Beaber, que lhes dizem o que devem pensar, fazer e, acima
de tudo, comprar.
Cresci embalado pelas histórias de Monteiro Lobato. Sonhava
sentar no colo da Tia Nastácia e comer seus bolinhos (no bom sentido!). Jamais
me pareceu enfática a ideia de que fosse uma negra – e nem me ocorria que ela
era “apenas” a cozinheira da casa. Tia Nastácia era uma extensão de Dona Benta.
Uma de duas avós fofas que eu comparava à minha própria avó (por sinal, dona de
um colo aconchegante e igualmente versada na arte dos bolinhos).
Muitas vezes, parceiro, a maldade não está no mundo. Está
nos olhos de quem vê.
* * *
Se esse movimento “revisionista” avançar, teremos problemas
sérios para entender a evolução da sociedade e de nossa própria espécie (cujos
detalhes, muitas vezes, só podem ser pinçados de livros e filmes, fictícios ou
não). Se alguns desses produtos são racistas, assim devem ser mantidos – nem
que pelo simples propósito de nos darem uma visão de como as coisas “nunca mais
deveriam ser”.
Há alguns anos, escrevi um livro sobre um personagem icônico
da cultura ocidental – James Bond, o agente 007. Enquanto relia os romances de
Ian Fleming (criador do personagem), arrepiavam-me os cabelos da nuca
afirmações como: “Bond considerava todos os coreanos macacos, abaixo do homem
na escala da evolução.”
É horrível, sim – mas também é um retrato da época em que esses
livros foram escritos (a Inglaterra dos anos 50, ainda traumatizada com a
Segunda Guerra). Se um autor popular ousava escrever esse tipo de máxima, é
porque tinha o apoio de grande parte da sociedade; e isto nos permite entender
o quanto a sociedade evoluiu de lá para cá.
E depois: os livros de James Bond (tanto quanto os de
Monteiro Lobato) não eram apenas racistas. Também eram divertidos,
informativos, bem-escritos e, às vezes, geniais. Como separar o joio do trigo
sem descaracterizar completamente essas obras? Mais do que “censura”, essa
variação “friendly” da boa e velha caça às bruxas é uma deturpação pura e
simples. Alterar o conteúdo de uma obra para “adaptá-la” a uma nova era e
contexto é apropriação indevida de propriedade intelectual.
* * *
A luta para erradicar o “mal” dos livros de Lobato me lembra
a situação vivida pelo personagem Alex, de “Laranja Mecânica” (romance escrito
por Anthony Burgess em 1962 e adaptado para o cinema por Stanley Kubrick).
Ambientada em um futuro decadente, a história mostrava um
esforço patético do Governo Inglês para erradicar a violência da sociedade (no
caso, cortesia de hordas de delinqüentes juvenis que matavam, mutilavam e
violavam sem qualquer traço de consciência).
Ao colocar as mãos no repulsivo (e ao mesmo tempo,
carismático) Alex, as autoridades o submetiam a uma lavagem cerebral cujo
propósito era coibir suas emoções, deixando-o virtualmente inofensivo.
O experimento dava certo – até a página 5. Pois o que
ninguém sabia era que Alex era grande apreciador da música de Beethoven; e ao
eliminar sua compulsão para o “mal”, o experimento também aniquilou tudo o que
ele tinha de “bom”: a sensibilidade artística, o gosto sofisticado para a
música (ocultos sob as vestes de um criminoso).
É que, às vezes, no processo de eliminar um demônio,
acaba-se destruindo um anjo.
Eis aí um tópico para a “Turma dos Direitos Humanos” pensar
na cama.
É exercício mais estimulante e produtivo do que varrer a
sujeira para debaixo do tapete.