BLADE RUNNER: 30 ANOS COMO ÍCONE DA FICÇÃO CIENTÍFICA
Os replicantes e o caçador de andróides, três décadas depois
Apesar do status
de “filme cult” e de ter inspirado gerações de cineastas, Blade Runner veio ao mundo em um parto traumático. A estreia
aconteceu no dia 25 de junho de 1982 e as complicações começaram muito antes,
na época em que o enredo foi concebido: fruto da anticonvencional imaginação de
Philip K. Dick (cuja obra também nos deu o bom e mais contemporâneo Minority Report), a trama tinha aquele
viés sombrio e distópico que caracteriza os romances do autor (falecido em
1982; antes, portanto, de gozar a fama que Blade
Runner lhe traria, se tivesse passado incólume pelo restante daquela
década).
A ficção científica de Philip K. Dick não era poética como a
de Ray Bradbury, sóbria como a de Isaac Asimov ou fácil de assimilar como a de
H. G. Wells. Ao contrário, era esquisitona, delirante e meio paranóica, apesar
de genial – e, para complicar as coisas, suas novelas mais famosas (dentre
elas, “Do Androids Dream of Electric Sheep?” / “Sonham os Andróides com Ovelhas
Elétricas?”, que inspirou Blade Runner)
tinham mensagens incompatíveis com o clima otimista do “Verão do Amor”.
O mundo sonhava com uma época de entendimento entre os
homens, enquanto Philip K. Dick sonhava com andróides que viviam em uma Terra
desmantelada e transformada em depósito de páreas. No futuro idealizado pelo
autor, o homem já alcançara as estrelas, mas deixara para trás um mundo em
pandarecos, policiado por tipos questionáveis como Rick Deckard, um blade runner – assim eram chamados os
funcionários do governo incumbidos de caçar e eliminar humanos artificiais que,
de tão perfeitos, podiam se passar por gente de carne e osso.
No fundo, a trama era uma atualização “sessentista” dos
conceitos de “Frankenstein”, ilustre romance de Mary Shelley que iniciou uma
discussão manjada da ficção científica: será que o homem é moralmente apto a
imitar o mecanismo da Criação e assumir o papel de Deus?
HISTÓRIA ESTRANHA
Muita gente não entendeu qual era a de Philip K. Dick ao
contar aquela história estranha, mesmo porque, a possibilidade do homem recriar
o homem em um tubo de ensaio (ou em uma linha de montagem) era remota naquele
tempo – o primeiro bebê de proveta só veio ao mundo em 1978, dez anos após a
publicação de “Do Androids Dream of Electric Sheep?”
Mesmo assim, o cineasta Ridley Scott (que tinha no currículo
outra ficção científica de vulto, Alien –
O Oitavo Passageiro) viu qualidades no enredo e pensou que não seria um
problema transportá-lo para o cinema. Quem poderia contestar essa afirmação,
considerando que o gênero estava em alta no fim dos anos 1970 (aquecido pela
popularidade de Star Wars e do Superman de Richard Donner)?
A primeira versão do roteiro de Blade Runner foi assinada por Hampton Fancher, que definiu a
“espinha dorsal” da obra que hoje conhecemos: já naquele tratamento, o blade runner (vivido por Harrison Ford)
perseguia humanos “genéricos” que, tomando consciência da própria mortalidade,
demandavam mais tempo de vida de seus criadores.
Fancher também sublinhou o envolvimento sentimental entre o
herói e a mocinha Rachel (Sean Young) – por sua vez, uma mulher artificial
(feita do mesmo material de que eram feitas as vítimas de Deckard). Mas foi
David Webb Peoples (autor dos roteiros de Os
Doze Macacos e Os Imperdoáveis) que
fez o “ajuste fino” na imagem, trabalhando a partir das ideias de Fancher.
Peoples cunhou o termo “replicante” (uma inovação em relação aos “geriátricos”
robô, autômato ou andróide).
As versões preliminares do roteiro já sugeriam o uso de uma
narração em “off” para a história, homenageando o estilo dos antigos filmes noir (tão característicos da década de
1940). No entanto, a proposta era que este recurso fosse utilizado muito
sutilmente, quase como uma “música de fundo” para a narrativa.
CONFLITOS NO SET
Ridley Scott, um criador meticuloso desde aquele tempo, fez
de tudo para contagiar a equipe técnica e o elenco com seu entusiasmo. O que
ele queria era entregar ao público um filme que não fosse apenas “especial”,
mas auto-suficiente em relação à novela que o inspirara.
Na versão fílmica de “Blade Runner”, portanto, desaparecem
as referências explícitas que a novela fazia a uma guerra atômica (um dos
eventos que teriam conduzido a Terra ao futuro sombrio imaginado por Philip K.
Dick). O diretor apelou para um recurso mais charmoso (e decididamente mais
“cinematográfico”) para sugerir o apocalipse: uma chuva ácida cai
intermitentemente sobre a Los Angeles do futuro (que substitui a São Francisco
do romance), assinalando que, em algum ponto da história, a vida no planeta se
tornou insustentável. Se por obra de uma guerra nuclear ou de uma hecatombe
ambiental, cabia ao público decidir.
Scott também palpitou na direção de arte, encomendada ao
“craque” Syd Mead. O cineasta não queria nada na linha “tecnológica” de Fuga do Século XXIII e O Abismo Negro. A metrópole decadente (e
visualmente esquizofrênica) por onde perambulam o herói Deckard e os
ameaçadores replicantes liderados por Roy (Rutger Hauer) mescla referências de
muitas culturas e épocas – há telões supermodernos no alto dos edifícios, mas a
arquitetura é velha e decadente. Mead criou este conceito (mais tarde, tão
imitado) inspirando-se em Hong Kong, uma metrópole com rasgos de modernidade e
de vanguardismo, mas com raízes medievais. Nos arranha-céus que a câmera
percorre no início do filme, também se nota a influência do clássico Metrópolis, cujos sets ainda são
triunfos de design.
Infelizmente, a presença de Scott no set não foi apenas
“inspiradora”. Controlador ao extremo (e muito temperamental), o diretor brigou
com quase todo mundo durante a realização do filme. Os técnicos não queriam
vê-lo nem pintado de ouro e até o astro Harrison Ford lhe virou a cara – no
caso, por diferenças criativas quanto ao projeto.
Uma das queixas de Ford era que o cineasta não lhe dedicava
a devida atenção, ajudando-o a compor seu personagem. Mas é preciso entender o
diretor: sob o peso de uma produção tão complexa (e sob a estreita vigilância
dos chefões do estúdio), Scott estava acuado. Apesar do êxito de Alien – O Oitavo Passageiro, ele ainda
era um “novato” e não tinha a moral de um Stanley Kubrick para impor sua visão
aos técnicos e atores. Aos trancos e barrancos, a produção foi concluída –
felizmente, sem que os atritos nos bastidores afetassem a qualidade artística
do projeto (algo que jamais foi questionado, mesmo à luz dos eventos que vieram
depois). Montado e sonorizado por uma antológica trilha sonora de Vangelis, Blade Runner estava prestes a vir à luz.
Mas aí, aconteceram as complicações de parto...
MORTE E RESSURREIÇÃO
Blade Runner – o
filme seminal que, hoje, dispensa apresentações e que todos querem imitar – foi
um retumbante fracasso de crítica e de público em 1982. A coisa foi tão feia
que a genialidade do diretor (exaltada não apenas em Alien, mas no excelente Os
Duelistas, de 1977, que também ganhara boas críticas) foi colocada em
xeque. A ironia é que, talvez, o fracasso tenha se devido justamente ao apuro
da produção – impecável não só no âmbito estético, mas na composição caprichada
dos personagens e em seu autêntico senso de drama.
Com base nos mais facilmente “digeríveis” Star Wars e Superman, o que era Blade
Runner? A pergunta procedia, considerando-se que, até então, ninguém
esperava muita sutileza de um filme de ficção científica. Sem alienígenas de
aspecto bizarro, duelos de sabres de luz ou mocinhos com superpoderes, Blade Runner era uma ficção científica
atípica demais para o período.
Mas, em uma reviravolta que ninguém poderia antecipar em
1982, o mercado de home video
resgatou do limbo esta oba-prima – à medida que espectadores de outra geração o
descobriam nas videolocadoras, em versão VHS. Aos poucos, uma áurea de interesse
foi envolvendo a produção – e, no fim daquela década, ninguém mais questionava
o valor do filme. A explicação para o “naufrágio” nas bilheterias era óbvia:
exatamente como a história que contava, Blade
Runner – o filme – estava muito à frente de seu tempo.
VERSÕES
E ainda há muito a se descobrir no filme. A prova disso não
está apenas em sua incrível longevidade (seu look se mantém assombrosamente atual, mesmo nesses tempos de motion capture e matte paintings digitais), mas no fato de as pessoas ainda
debaterem pontos-chave da história e da realização (“será que Rick Deckard
também era um replicante?”; “O filme fica melhor ou pior sem a narração em
‘off’’?”). Relançada várias vezes (em versões que atestam as diferentes visões
do realizador e do estúdio da mesma história), a obra se esquiva de um
veredicto definitivo e estimula a discussão, o que indubitavelmente contribui
para a magia que permeia a produção.
Lembrando que, há alguns anos, a Warner lançou um DVD
contendo os cinco “cortes” de Blade
Runner (esta superedição também está disponível no Brasil). É prazeroso ver
como a trama assume novos significados a cada remontagem. Seja no modo
“estendido” ou com metragem econômica, com ou sem narração em “off”, acrescida
ou destituída dos retoques digitais que Scott fez em algumas cenas (servindo-se
das modernas ferramentas digitais), O
Caçador de Andróides é sempre um grande filme.
Seu maior legado talvez seja nos lembrar de que, sem correr
riscos, dificilmente um cineasta conseguirá produzir uma obra que resista à
prova do tempo, juntando-se à seleta galeria de produções que, às vezes,
justificam a existência de um gênero.
Bravo!
Este artigo foi originalmente veiculado no site "O Capacitor"
Este artigo foi originalmente veiculado no site "O Capacitor"