quinta-feira, 16 de maio de 2013

Crônica - Churrascarias



"CORAÇÃOZINHO, SENHOR?"




Churrascaria é o que há, meu amigo.

Muitos preferem Sushi e Sashimi a uma sangrenta peça de picanha (e o Dr. Drauzio Varella deve estar orgulhoso desse pessoal). Mas acredito que 65% dos humanos ainda se recusam a comer em restaurantes japoneses, aqueles locais onde a comida é servida fria e os guardanapos são servidos quentes.

O tempo e a experiência transformam qualquer autêntico carnívoro em um connaisseur desses ambientes. Porque os rodízios podem ser categorizados como tudo o mais nessa vida – inclua-se aí os uísques, charutos e até os refrigerantes. O Fogo de Chão, por exemplo, é a Coca-Cola das churrascarias. O Picanha de Ouro, na Avenida Dr. Ricardo Jafet (zona sul de São Paulo), é o Guaraná Dolly da categoria.

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Carnívoros sabem que uma churrascaria falhou em seu objetivo primordial quando, uma vez lá, se veem entre mulheres, crianças e idosos na fila do bufê de saladas. Porque salada – e isto não é nenhum segredo – não é propriamente comida; é o que a comida come.

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No Picanha de Ouro, as carnes são tão ruins, mas tão ruins, que o bufê de saladas é um must.

De repente, você se vê usando a força e o tamanho para impedir que uma mulher consiga o rabanete mais polpudo ou a folha de rúcula mais verdinha do balcão.

É vexatório, mas é a luta pela sobrevivência: um homem não pode ser responsabilizado pelo que faz em uma churrascaria como a “Picanha de Ouro”, onde sempre existe o risco de a costela ou da fraldinha mugirem e pularem da mesa escoiceando, ao serem cutucadas por um garfo. Porque estabelecimentos como a “Picanha de Ouro” não entendem a sutileza do termo “mal-passado”.

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Outra curiosidade sobre as churrascarias é que elas têm um tácito código hierárquico. É, sim: igualzinho aos daquelas sociedades secretas (Rosa Cruz, Maçonaria, Pró-Vida, Hogwarts...).

Sentado à mesa, vendo as carnes passarem e assistindo ao Vídeo Show em uma TV de Plasma fixada à parede, o cliente nem imagina que um código primal de organização rege aquele estabelecimento. As regras foram definidas muito tempo atrás, quando ainda usávamos roupas de peles e caçávamos mamutes nas pradarias.

Nos rodízios de carnes, esta hierarquia começa no “coraçãozinho”.

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Não há o que discutir: o pobre diabo a quem confiam o “coraçãozinho” (de galinha ou de frango, ninguém sabe ao certo) é um neófito, um iniciante, um GV (“garçom virgem”). O elo mais fraco da corrente.

Comiserado, magrinho, ele se esgueira pelo salão e amarga a mais inglória das tarefas: oferecer “coraçãozinho” a machos esfomeados que, por volta das 13h30, salivam pavlovianamente à simples menção da palavra “picanha”.

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"Coraçãozinho, senhor?" 

Silêncio sepulcral na mesa. Alguém esbarra em um copo, que quase cai.

Caberá ao macho mais sensível do grupo (sempre existe um) acabar com aquele constrangimento, dando um tapinha amistoso na mão do rapaz e o libertando daquele pesadelo:

“Vamos esperar pela próxima, obrigado.”


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Mas um lampejo de esperança ilumina a alma de nosso herói, tão logo lhe confiam o primeiro espeto de linguiça temperada.

Veja bem – não é assim uma Brastemp. Mas a linguiça temperada prova algo importante: o problema não era ele, afinal... Era o coraçãozinho.

Agora, ele se sente aceito e querido. Um dia, poderá ser o maioral do pedaço. Usando bombachas e com um lenço no pescoço – facão em uma mão e espeto na outra –, manobrará cortes de picanha entre as mesas e será olhado com inveja pelos colegas. A clientela disputará sua atenção. As mulheres lhe dirigirão sorrisos enigmáticos.

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Foi uma batalha dura, seu orgulho ficou ferido, mas ele perseverou e venceu. Recobrou o respeito próprio. Sobreviveu ao teste do coraçãozinho.

Nas churrascarias, tanto quanto no tempo dos Neandertais, é isto o que separa os meninos dos homens.