terça-feira, 7 de maio de 2013

Crônica - Cães II



SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO




Yan, meu lhasa-apso de estimação, foi para o Céu dos cachorrinhos há coisa de três semanas. Foi um nocaute. Passei dois dias chorando como uma garotinha, mas agora estou melhor. Mentira, não estou não. Ainda choro como uma garotinha – mas, de uns dias para cá, só no carro, à noite, quando volto do trabalho para casa.

É esquisito abrir a porta da sala e não vê-lo ali. Yan era um cachorro de apenas 8 kg, mas parecia ocupar todos os cômodos, cada recôndito da área social, do quintal ou da lavanderia. À noite, quando me levanto para beber água ou ir ao banheiro, ainda olho por onde piso. Em minha mente, ele ainda está por ali, fazendo aquelas incursões noturnas que todo cachorro faz. Mas, claro, é só minha imaginação. Uma “sensação fantasma”.

Dizem que acontece o mesmo com quem perde um braço ou uma perna. Durante semanas, o amputado tem a impressão de que o membro continua ali. Sente coçar um braço que deixou de existir. Tem câimbras em uma perna que lhe foi retirada. Curiosa é a relação do ser humano com a perda.   

* * *

Sempre simpatizei com cães, mas nunca tivera um deles. Ingenuamente, achava que perder um comparsa peludo fosse uma experiência triste, mas que não se equiparasse à perda de um membro da família. Eu estava errado: o vazio, o buraco que fica na alma da gente, é o mesmo. Se há algum atenuante é a noção de que, quando vêm ao mundo, cães estão largados à sua própria sorte. São bichos domesticados, não sabem se virar sozinhos. Foram excessivamente “humanizados” e não dispõem de meios para sobreviver no mundo dos homens, esta espécie hedionda e moralmente antropofágica que violenta os próprios filhos (e os filhos dos outros) e não se sensibiliza mais com os infortúnios impostos à sua própria raça, que se dirá a animais quadrúpedes.

Aí, tenho um consolo: Yan deu uma sorte danada. Foi adotado por uma família que o amou incondicionalmente. Jamais teve um dia miserável. Jamais sequer sangrou. Na velhice, diabético, teve quem cuidasse dele, quem lhe aplicasse injeções de insulina, quem o alimentasse na hora certa – minha mãe, que o tratou e acalentou como um bebê humano desde os primeiros dias de vida. Eu mesmo não sei se contarei com essas regalias quando estiver velhinho. Mais: suspeito que morrerei de câncer ou de forma igualmente desagradável. Yan morreu de um ataque do coração. Não sentiu nada – se a gente soubesse, de antemão, que o fim seria assim, jamais teria qualquer motivo para temer a vida.

Dos males, o menor. Meu único trabalho, agora, é administrar a perda. Estou pagando o ônus por 12 anos de muita felicidade. É justo.

* * *

Depois de um primeiro e pavoroso fim de semana sem o Yan, sobreveio o feriado de Páscoa e achei – não sei por que – que seria uma boa ideia dar uma passada na casa da minha mãe e levá-la à tradicional missa celebrada no bairro de Santana por ocasião das sextas-feiras santas. Que egoísta eu sou: a última vez que havia pisado em uma igreja fora há dez anos, na missa de sétimo dia do meu pai. Assumo ser um desses covardes que só buscam o consolo espiritual nas horas difíceis. Bom, pelo menos, sou sincero.

A Matriz de Santana está igualzinha ao que era em minha infância – passo na frente do templo quase toda semana, mas de carro, sempre às pressas. No fundão da igreja, de pé, assisti a um quarto da missa. Foi o máximo que aguentei, mas apreciei a sensação de quietude proporcionada pelo prédio.

É quase como se um campo de força acústico-espiritual isolasse a edificação dos sons mundanos da rua. Ouvi, pela enésima vez, o relato da prisão de Jesus, os argumentos de acusação contra Sua pessoa, e, por fim, os sórdidos detalhes de Sua execução. Dessa vez, a mise-en-scène se resumia a um locutor lendo, emocionado, aquele libreto de missa – nada muito espetacular. Mas, em outros tempos, nessa mesma igreja, os párocos recorriam até a montagens teatrais para recriar, diante do público, os lances mais impactantes da Paixão.

Em 1979, o teatro foi tão bom, mas tão bom, que houve reprise do espetáculo na missa de sábado. Lembro de chegar esbaforido à frente da igreja e perguntar ao sacristão: “Já julgaram Jesus? Não? Dá licença, deixa eu entrar.”

* * *

No espírito em que eu me encontrava, talvez tivesse assistido à missa na íntegra na última sexta-feira santa. Mas o sermão me demoveu dessa ideia. Hoje sei qual é o problema desses rituais litúrgicos quando você é (ou tenta ser) um livre pensador: ministrado no meio da missa, o sermão é um tremendo anticlímax. É como se você estivesse vendo um filme e, no meio da projeção, as luzes se acendessem e um crítico aparecesse ali na frente, fazendo suas considerações sobre o longa-metragem que, até então, você acompanhava com interesse. Melhor seria se o sermão ficasse para o fim, cabendo a cada um a decisão de ouvir ou não as considerações do padre. Crítica no meio do espetáculo não tem condições!

Fui fumar um cigarro lá fora e, como se contratados por um astuto diretor de elenco, personagens da minha infância começaram a se materializar à minha frente – primeiro, o Gelol, amigo do meu irmão na Comunidade de Jovens e que eu não via desde 1985 (ou 86). Conversamos, rimos, atualizamos um hiato de duas décadas. De repente, não mais que de repente, também surgiram meu primo Ronaldo e – pasme! – minha professora de catecismo. E muitas outras pessoas das quais eu não me lembrava mais. O assunto do cachorrinho veio à tona e aquela boa gente – aqueles fantasmas redivivos – me consolou, me abraçou, me deu tapinhas nas costas e até me fez rir. Quem diria? Estávamos conectados de novo, após anos de separação. E, no minuto seguinte, cada um seguia seu rumo, de volta à sua própria vida.

* * *

O que a última sexta-feira da paixão me ensinou foi que, quando nos lembramos de nosso passado, nos tornamos mais resistentes aos nocautes do presente. Situações assim – reencontros fortuitos e marcantes, como estes – nos fazem ver que, antes do “hoje sombrio”, houve incontáveis “ontens felizes”. E que morremos e renascemos um sem-número de vezes nessa vida, embora tendamos a nos esquecer disso e a supervalorizar a dor mais recente. Isso, é claro, não exclui o sofrimento, o vazio deixado por uma perda. Mas nos lembra de que viver é testemunhar uma sucessão de anoiteceres e amanheceres. E de que, entre estes – acredite, sei o que estou dizendo –, é possível (bem possível) a gente ser feliz.

Tchau, Yan. Obrigado por tudo. Com seus 8 kg de alegria e amor, você fez uma enorme diferença.

De modo algum foi tempo perdido.