SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO
Yan, meu lhasa-apso de
estimação, foi para o Céu dos cachorrinhos há coisa de três semanas. Foi um
nocaute. Passei dois dias chorando como uma garotinha, mas agora estou melhor. Mentira,
não estou não. Ainda choro como uma garotinha – mas, de uns dias para cá, só no
carro, à noite, quando volto do trabalho para casa.
É esquisito abrir a porta da
sala e não vê-lo ali. Yan era um cachorro de apenas 8 kg , mas parecia ocupar todos os cômodos, cada recôndito
da área social, do quintal ou da lavanderia. À noite, quando me levanto para
beber água ou ir ao banheiro, ainda olho por onde piso. Em minha mente, ele
ainda está por ali, fazendo aquelas incursões noturnas que todo cachorro faz.
Mas, claro, é só minha imaginação. Uma “sensação fantasma”.
Dizem que acontece o mesmo com
quem perde um braço ou uma perna. Durante semanas, o amputado tem a impressão
de que o membro continua ali. Sente coçar um braço que deixou de existir. Tem
câimbras em uma perna que lhe foi retirada. Curiosa é a relação do ser humano
com a perda.
* * *
Sempre simpatizei com cães,
mas nunca tivera um deles. Ingenuamente, achava que perder um comparsa peludo
fosse uma experiência triste, mas que não se equiparasse à perda de um membro
da família. Eu estava errado: o vazio, o buraco que fica na alma da gente, é o
mesmo. Se há algum atenuante é a noção de que, quando vêm ao mundo, cães estão
largados à sua própria sorte. São bichos domesticados, não sabem se virar
sozinhos. Foram excessivamente “humanizados” e não dispõem de meios para sobreviver
no mundo dos homens, esta espécie hedionda e moralmente antropofágica que
violenta os próprios filhos (e os filhos dos outros) e não se sensibiliza mais
com os infortúnios impostos à sua própria raça, que se dirá a animais quadrúpedes.
Aí, tenho um consolo: Yan
deu uma sorte danada. Foi adotado por uma família que o amou
incondicionalmente. Jamais teve um dia miserável. Jamais sequer sangrou. Na
velhice, diabético, teve quem cuidasse dele, quem lhe aplicasse injeções de
insulina, quem o alimentasse na hora certa – minha mãe, que o tratou e
acalentou como um bebê humano desde os primeiros dias de vida. Eu mesmo não sei
se contarei com essas regalias quando estiver velhinho. Mais: suspeito que
morrerei de câncer ou de forma igualmente desagradável. Yan morreu de um ataque
do coração. Não sentiu nada – se a gente soubesse, de antemão, que o fim seria
assim, jamais teria qualquer motivo para temer a vida.
Dos males, o menor. Meu
único trabalho, agora, é administrar a perda. Estou pagando o ônus por 12 anos
de muita felicidade. É justo.
* * *
Depois de um primeiro e
pavoroso fim de semana sem o Yan, sobreveio o feriado de Páscoa e achei – não
sei por que – que seria uma boa ideia dar uma passada na casa da minha mãe e
levá-la à tradicional missa celebrada no bairro de Santana por ocasião das
sextas-feiras santas. Que egoísta eu sou: a última vez que havia pisado em uma
igreja fora há dez anos, na missa de sétimo dia do meu pai. Assumo ser um desses
covardes que só buscam o consolo espiritual nas horas difíceis. Bom, pelo menos,
sou sincero.
A Matriz de Santana está
igualzinha ao que era em minha infância – passo na frente do templo quase toda
semana, mas de carro, sempre às pressas. No fundão da igreja, de pé, assisti a
um quarto da missa. Foi o máximo que aguentei, mas apreciei a sensação de quietude
proporcionada pelo prédio.
É quase como se um campo de
força acústico-espiritual isolasse a edificação dos sons mundanos da rua. Ouvi,
pela enésima vez, o relato da prisão de Jesus, os argumentos de acusação contra
Sua pessoa, e, por fim, os sórdidos detalhes de Sua execução. Dessa vez, a mise-en-scène
se resumia a um locutor lendo, emocionado, aquele libreto de missa – nada muito
espetacular. Mas, em outros tempos, nessa mesma igreja, os párocos recorriam
até a montagens teatrais para recriar, diante do público, os lances mais
impactantes da Paixão.
Em 1979, o teatro foi tão
bom, mas tão bom, que houve reprise do espetáculo na missa de sábado. Lembro de
chegar esbaforido à frente da igreja e perguntar ao sacristão: “Já julgaram
Jesus? Não? Dá licença, deixa eu entrar.”
* * *
No espírito em que eu me
encontrava, talvez tivesse assistido à missa na íntegra na última sexta-feira santa.
Mas o sermão me demoveu dessa ideia. Hoje sei qual é o problema desses rituais
litúrgicos quando você é (ou tenta ser) um livre pensador: ministrado no meio
da missa, o sermão é um tremendo anticlímax. É como se você estivesse vendo um
filme e, no meio da projeção, as luzes se acendessem e um crítico aparecesse
ali na frente, fazendo suas considerações sobre o longa-metragem que, até
então, você acompanhava com interesse. Melhor seria se o sermão ficasse para o
fim, cabendo a cada um a decisão de ouvir ou não as considerações do padre. Crítica
no meio do espetáculo não tem condições!
Fui fumar um cigarro lá fora
e, como se contratados por um astuto diretor de elenco, personagens da minha
infância começaram a se materializar à minha frente – primeiro, o Gelol, amigo
do meu irmão na Comunidade de Jovens e que eu não via desde 1985 (ou 86).
Conversamos, rimos, atualizamos um hiato de duas décadas. De repente, não mais
que de repente, também surgiram meu primo Ronaldo e – pasme! – minha professora
de catecismo. E muitas outras pessoas das quais eu não me lembrava mais. O
assunto do cachorrinho veio à tona e aquela boa gente – aqueles fantasmas
redivivos – me consolou, me abraçou, me deu tapinhas nas costas e até me fez rir.
Quem diria? Estávamos conectados de novo, após anos de separação. E, no minuto
seguinte, cada um seguia seu rumo, de volta à sua própria vida.
* * *
O que a última sexta-feira da
paixão me ensinou foi que, quando nos lembramos de nosso passado, nos tornamos
mais resistentes aos nocautes do presente. Situações assim – reencontros fortuitos
e marcantes, como estes – nos fazem ver que, antes do “hoje sombrio”, houve incontáveis
“ontens felizes”. E que morremos e renascemos um sem-número de vezes nessa vida,
embora tendamos a nos esquecer disso e a supervalorizar a dor mais recente. Isso,
é claro, não exclui o sofrimento, o vazio deixado por uma perda. Mas nos lembra
de que viver é testemunhar uma sucessão de anoiteceres e amanheceres. E de que,
entre estes – acredite, sei o que estou dizendo –, é possível (bem possível)
a gente ser feliz.
Tchau, Yan. Obrigado por tudo.
Com seus 8 kg de alegria
e amor, você fez uma enorme diferença.
De modo algum foi tempo
perdido.