DECADENCE SANS ELEGANCE
Deu na coluna de Cristina Padiglione no “Estadão” esta semana: a Rede Globo de Televisão registra, atualmente, o pior Ibope nacional de sua história. É um handicap bem diferente da Globo dos tempos áureos – aquela que o Clodovil costumava chamar de “Vênus Platinada” e que era regida com mão-de-ferro por José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni.
Trabalhei na TV Globo em 1990/1991. Fui estagiário do
Departamento de Promoções, subordinado ao grande (em todos os sentidos, pois
tinha uma pança estratosférica!) Jorge Moreno, então, Gerente de Produção da
emissora em São Paulo. Tenho saudade do tempo que passei naquele predinho no
centro, bem ao lado do Minhocão, onde virava as tardes assistindo a filmes e
séries e criando chamadas promocionais para essas atrações.
* * *
A Globo da época ainda era o “Monstro Sist” citado por Raul
Seixas em seus discursos e músicas. Uma emissora incrivelmente influente que
manipulava eleições, proibindo a inserção de bandeiras vermelhas ou de personas
non-gratas em seus telejornais e chamadas. Dois anos antes de assinar minha
carteira, a Globo mexera os pauzinhos para eleger o Collor, de longe, o mais
ridículo dos presidentes brasileiros (isso é, descontando-se o Milton Gonçalves
naquele filme Segurança Nacional).
No papel de “Monstro Sist”, a Globo era adepta daquelas
baboseiras autoritárias que fazem a alegria dos tiranos: qualquer deslize era
motivo para demissão sumária. Errar até podia ser humano, mas não era
condizente com o “Padrão Globo de Qualidade”.
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Eu que o diga.
Um dia (ih, que burro, dá nota zero pra mim!), quebrei uma
“Cópia A” do filme “Tubarão 2”
na moviola da Promoções enquanto selecionava imagens para uma chamada do
referido longa-metragem. Passei duas horas escondido em um banheiro do andar
térreo, abraçado a um rolo de celulóide, esperando por uma oportunidade de
entrar no almoxarifado de películas ao lado da recepção, onde, finalmente
(cinco quilos mais magro, por conta da sudorese), pude emendar os fotogramas
danificados usando uma seladora especial. Se tivesse sido pego, eu teria sido
demitido. Simples assim, "chefia".
Duvido que esse tipo de terrorismo corporativo ainda tenha
lugar no mundo. É algo a ser exposto e admirado em um museu, tanto quanto os
índices de audiência absolutos que a Globo obtinha naquela época. São histórias
que nunca mais se repetirão.
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Havia, porém, uma coisa admirável na Globo daquele tempo –
desde que você abstraia das questões ideológicas e se fixe, apenas, em sua
capacidade de proporcionar diversão: o “Padrão Globo de Qualidade” funcionava
mesmo. E, cá pra nós, acho que aquele clima militar tinha tudo a ver com a
eficácia do sistema. Basta rever uma das boas novelas da época (como “Roque
Santeiro” e “Vale Tudo”) para constatar que, em suas cenas, não havia uma folha
fora de lugar, uma interpretação recalcitrante, uma concessão à
auto-indulgência com a qual a “Vênus Platinada” se policia atualmente.
E, sem dúvida, ele – o temido Boni, inventor do “padrão” –
era o homem certo para liderar o exército naquele tempo. Não só por suas
atitudes enérgicas, que fizeram escola e transformaram uma emissora de
televisão em uma versão moderna do Senado Romano (antes de se demitir ou ser
“fritado”, acho que era direito do funcionário beber cicuta...): mas por ter
sonhado (e sabido implementar) uma TV que podia ser de qualquer país, que “não
tinha sotaque” (palavras textuais) e que, sim, conquistou uma parte
significativa do mundo com sua teledramaturgia “tipo exportação”.
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Antes do Boni, a Globo era uma emissorazinha regional que
pensava pequeno e agia como tal (basicamente o que é hoje, apesar do pedigree e
do alcance nacional). Depois do Boni, tornou-se uma rede – uma potência em seu
segmento, tanto quanto a CBS e a NBC nos EUA. E creio que, sob o comando do
“gordinho”, teria resistido melhor aos sucessivos nocautes que foram
desconstruindo sua invencibilidade, ano a ano (não por coincidência, depois de
Boni abdicar do cargo): a fúria dos pastores eletrônicos, o advento da Internet
e das redes sociais e a decadência pública de seu casting áureo. Alguém ainda
aguenta olhar para a cara da Susana Vieira? Alguém ainda se impressiona com as
atuações “magistrais” do Stênio Garcia? Bah – vá ver se eu estou na esquina.
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A trajetória da Globo nos anos 60, 70, 80 e 90 é contada em
primeiríssima pessoa no legal “O Livro do Boni”(Casa da Palavra, 464 páginas),
que estou lendo atualmente e que recomendo a todos por aqui. Olha: não é uma
narrativa excepcional, porque o Boni, como contador de histórias, é um ótimo
empresário de TV. Mas os relatos são curiosos, tanto quanto a descoberta de que
outros ícones locais das telecomunicações foram fundamentais para a
consolidação da Globo (sempre por intermédio do Boni, que passou por esses
lugares antes de ir tocar a emissora da Família Marinho): as TVs Tupi e
Excelsior, a Rádio Bandeirantes e até a Record dos festivais, na era
“pré-evangelização”. Pra matar o tempo e relembrar en passant momentos
divertidos da telinha, não há pedida melhor.
Em tempo: o tal do “Viva” (na grade da NET, Canal 36) andou
reprisando, com sucesso, alguns hits da emissora produzidos nos anos 1980, como
as já mencionadas novelas “Roque Santeiro” e “Vale Tudo”. Entretanto, anda
forçando a barra ao tentar vender a ideia de que “Top Model” e “Barriga de
Aluguel” foram importantes marcos da cultura pop nos anos 90. Rá, rá – que
balela! “Barriga de Aluguel” era tão ruim na época como é hoje; e ninguém (nem
a mãe do Taumaturgo Ferreira) se lembrava mais de “Top Model” e de seus personagens
caricatos.
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Recordar é viver, sim!
E mentir é um hábito muito feio.
Duas lições que aprendi com minha avó.