"PLAY IT AGAIN, GOD!"
A vida da gente tem trilha
sonora, e isto é bom. O que não é bom é que só conhecemos a trilha sonora de nossa vida quando é tarde demais. Estamos aqui para viver papéis – quem
dirige o filme (e ataca de DJ) é o Sr.Acaso, a Lei das Probabilidades ou
Deus. Se é que existe Deus.
Antes fosse diferente: se
tivéssemos o roteiro em mãos (ou, em uma metáfora mais adequada, a playlist do show), não sairíamos por aí torcendo
o nariz para qualquer música. Não rejeitaríamos gêneros ou artistas. Talvez fôssemos
melhores ouvintes do que costumamos ser.
E nunca, jamais julgaríamos.
Vai que... Né?
* * *
Lá para frente, esta ou
aquela música “cafona” talvez venha a nos representar, torne-se a síntese de momentos
importantes, adquira um significado análogo a uma parte de nossa história. Não
existe unanimidade e aposto meu fígado (que está em bom estado, ao contrário do
pulmão) que, em 1792, houve quem achasse a Marselhesa um tremendo abacaxi. Quem
poderia saber, na época, que ela representaria a Revolução Francesa para sempre?
E tão bem?
Veja o Humphrey Bogart
naquele filme, “Casablanca”: ele odiava “As Time Goes By”, mas só porque a
música estava inexoravelmente ligada ao seu destino.
* * *
Assistindo a um trecho de
uma nova série da TV Globo – "Pé na Cova",
com Miguel Falabella – tive um revival
imediato do Terceiro Grau ao escutar, pela primeira vez em 20 anos (ou mais),
“Let the River Run”, uma canção melosa do início dos anos 90. Eu a conhecia bem
– lera a bula do “xarope” muito tempo atrás. Naquela época, a música foi tema
de um filme com Sigourney Weaver (“Uma Secretária de Futuro”), que eu não
assisti, mas que ganhou um Oscar e teve notoriedade suficiente para se fazer
notar. O refrão era assim:
“Let the river run,
let all the dreamers
wake the nation
Come, the New Jerusalem”
Eu deveria ter gostado, então,
pois era uma música de Carly Simon – que, como qualquer cinéfilo medianamente
letrado sabe, também interpretou um dos temas mais famosos da série 007,
“Nobody Does it Better” (do filme “O Espião que me Amava”). Mas naquele tempo,
não gostei. Ouvia a música ad nauseam
no rádio do carro do meu irmão, indo para a faculdade, todas as noites. "Let the River Run" ganhou a "cara" da época. E aquela, para mim, foi uma época cinza. Não uma
época negra, veja bem– mas cinza.
* * *
Por que, então, meu coração
bateu forte quando a escutei novamente, duas décadas depois, algumas horas
atrás, displicentemente deitado no sofá do meu apartamento? Ora – porque, a
essas alturas, devo estar na metade do livro que conta a minha história. E
consigo colocar quase tudo em
perspectiva, até aqueles primeiros e claudicantes capítulos.
Qualquer boa história parte
de um prólogo sem contexto; qualquer boa narrativa tem momentos insossos; e até
a melhor das canções tem uma estrofe da qual ninguém se lembra direito... Porém,
excluí-las da obra final é descontextualizá-la, é arruiná-la dramaticamente. Até
a estrofe ou capítulo mais recalcitrante tem relevância na trajetória que
conduz ao clímax.
* * *
Então, “Let the River the
Run” talvez seja uma boa metáfora do que foi ser jovem, para mim. Como aquela
música apoteótica (e um pouco cafona, sim), que não fui capaz de apreciar na
época, ter vinte e poucos anos é uma dádiva ingrata. Não existe tempo mais
lírico e cheio de sabores do que este. Não se experimenta mais emoção, antes ou
depois. Jamais se viverá tão perigosa ou ardentemente. O que sobrevém a
este período costuma ser melhor (se você der sorte), mas dificilmente será tão memorável.
Infelizmente, a regra é que,
na juventude, estamos tão confusos e preocupados em nos destacar que não reparamos
nas nuances e na beleza simples de uma composição. Queremos ser relevantes, temos
sede de sermos críticos e caímos em uma armadilha – vemos apenas o que achamos que deveríamos ver; o que achamos que seria inteligente ver. Não notamos, sequer, que o cinza é uma ilusão de óptica; que o cinza, a rigor, não existe. É um logro,
um amálgama de brancos e de pretos, de luz e de sombras. No entanto, é outra regra que
só percebemos isto quando ficamos maduros. Assim, não há muito a se fazer.
Exceto, claro, tirar
vantagem do mundo randômico onde vivemos, no qual o passado e o presente se
conectam a um clique do mouse.
* * *
Baixei “Let the River Run” na Internet.
Amanhã, vou escutá-la no som
do carro.
Desta vez, sem medo de ser
feliz.
P.S.: Eu queria registrar que esta série, “Pé na Cova”, é
um horror. Mas, claro, esta é só a minha opinião no momento. Nem imagino o que vou achar amanhã.