AMOR, ESTRÁBICO AMOR
Encontros às escuras são um flagelo da evolução. Pronto,
falei.
No princípio, eram apenas o homem, uma tanga de lã e uma
lança.
Solto nos campos, o macho era livre para escolher a fêmea
que lhe aprouvesse. O amor era “bruto” (no sentido literal do termo) e ninguém
precisava discutir a relação. Afinal, nossa linguagem se resumia a dois ou três
vocábulos e a uma biblioteca de grunhidos...
Mas a festa acabou lá por volta de 40.000 anos atrás, quando
começamos a racionalizar os princípios da atração e da convivência entre os
sexos. Os coitados dos homens de Neanderthal foram os primeiros a participar de
rudimentares terapias de casal.
Funcionava assim: o indivíduo mais forte da tribo, com um
pedregulho de três quilos na mão, incutia juízo na cabeça do cônjuge indeciso
ou infiel dando-lhe pancadas no cocuruto. Enquanto isso, a sogra da vítima –
macaca temperamental e com o dorso coberto de pelos grisalhos – aplaudia com as
quatro patas, dando cabriolas frenéticas. Era seu modo de dizer: “Tá vendo,
filha? Eu disse que esse traste não servia pra você...”
* * *
Dar presente de Dia dos Namorados, abrir a porta do carro,
pagar a conta do restaurante (ao menos no primeiro encontro, seu pão-duro!),
discutir a relação – todas essas coisas foram mesmo avanços notáveis na arte de
se relacionar. Do contrário, Átila o Huno teria ganho a vida como conselheiro
sentimental e publicado artigos tão sutis quanto iluminadores: “Estupro: Por
Que Não?””; “Quem Ama, Escalpela”; “Estacas: o Método Mais Rápido Para Chegar
ao Coração de uma Mulher”; e por aí vai...
Mas, em nome do bom-senso, quero reiterar: encontros às
escuras são o “ó do borogodó”.
* * *
O problema de ser solteiro é que todos os seus amigos
comprometidos, a certa altura do campeonato, vão querer te arrumar uma esposa.
Se não for ideia do amigo, será da mulher do amigo. “Ah, mas ele é um cara tão
legal! Precisa de uma esposa e de um filho! Toda panela tem a sua tampa!”
De fato, o cartão de crédito resolve esse problema,
rapidinho. Por meio dele, pode-se adquirir tampas das mais variadas formas e
tamanhos. Tampas orientais, mignons, oxigenadas ou “do tipo americana”; tampas
para serem usadas uma única vez e outras que o acompanham em festas e até em
viagens ao exterior. Hoje, as tampas vêm de táxi à sua casa (cobram um pequeno
adicional para isso). Algumas moram em flats em Moema. E eu conheço duas que
“hablan español”.
* * *
Esta visão cínica das coisas nem sempre funciona, claro.
Todo solteirão já se sentiu meio amargurado em um Dia dos Namorados. É
ridículo, eu sei – mas, às vezes, um comercial da Renner pode deixá-lo na
pior... Aquela gente feliz, trocando presentes e correndo no parque ao som de
“Unforgettable” (BLEARGGGHHH!), pode ser um soco na auto-estima de qualquer
lobo solitário (especialmente, se o lobo não estiver em uma boa fase).
A sensação passa no dia seguinte – de fato, passa no mesmo
dia: basta avistar os barzinhos lotados e se dar conta (ao som de “Also Sprach
Zarathustra”, tema de 2001 – Uma Odisseia no Espaço) que, este ano, você não
precisará encarar aquelas filas. Mas, até lá, a coisa pode ser sombria...
* * *
Ao longo desses 40 anos, tive um monte de “encontros às
escuras”. Dois acabaram bem: assim conheci minha primeira e minha última
namoradas, que me fizeram muito feliz e que, de um jeito estranho, viverão para
sempre neste velho e combalido coração (Oi, Ju! Oi, Mel!). Mas essas são
histórias de sucesso, não de fracasso – portanto, a tendência é a gente apagar
o prólogo e guardar apenas as highlights do espetáculo.
As histórias realmente engraçadas são as de encontros às
escuras que acabaram em blackout total.
* * *
Como esquecer aquele blind date de 1993, coestrelado pela
ex-cunhada de um amigo (ela acabara de sair de um casamento fracassado e, mesmo
assim, quis me conhecer – burra!). Era uma morena de lábios finos e belos. Tive
tempo de sobra para observá-los, já que, travada, ela não abriu a boca durante
duas horas – e olha que fiz de tudo para entabular conversa.
Espere, puxe uma cadeira, peça uma cerveja. A coisa fica
pior.
O encontro foi no Bar Brahma, centro de São Paulo, onde se
apresentava uma pianista de 120 anos de idade (declarados). O repertório era o
“hit parade” completo da época de Don João VI (adivinhe quem sugeriu o lugar?
Não fui eu...).
No fim da noite, o gelo derreteu um pouco – o bastante para
que a moça de lábios finos e belos se abrisse (infelizmente, no sentido
figurado) e desse início a um infindável blá-blá-blá sobre seu malogrado
casamento. Sou um profissional treinado e sei sorrir cordialmente diante dos
maiores descalabros – veja, já entrevistei o Alexandre Frota e uma Miss São
Paulo. Mas, intimamente, minha imaginação voava: visualizava a mim mesmo
enfiando a dita cuja dentro do piano da velhinha. Em meu delírio homicida, eu a
enforcava com as cordas do piano, só para me certificar de que aquela anta
chorona nunca mais caminharia sobre a terra...
* * *
A Internet é outro “campo minado” em se tratando de blind
dates. Na época em que tinha conta naquele site de relacionamentos, o Orkut me
ensinou a diferença entre “profile” e realidade.
Certa vez – marcado um encontro com determinada fulana no
Shopping Morumbi (a premissa: apenas um agradável almoço, todo mundo vestido,
coisa bem tradicional), vi-me em uma inusitada fuga pelos corredores do
estabelecimento. Com a malandragem adquirida em outras experiências do gênero,
prudentemente marquei o encontro em um dos elevadores e perguntei o que minha
acompanhante estaria vestindo.
Ao vê-la de trás de uma coluna – e me certificar que o
Photoshop faz milagres –, tratei de me escafeder dali rapidinho. Não foi um dos
meus melhores momentos, mas – hei! Eu sobrevivi!
* * *
Errar é humano, apesar de não ser recomendável, correto,
lógico e sequer aceitável se houver vidas humanas em risco; mas o fato é que
tenho outro blind date nos próximos dias. De fato, não sei se vou; pode ser que
eu fuja de novo, como um ladrão, já que gato escaldado tem medo de água fria
(copyrights: minha avó).
Pode ser uma catástrofe, mas pode ser uma coisa boa. É um
daqueles momentos em que a gente se sente o Pensador, de Rodin, perdido em
elocubrações. Should I stay or should I go?
Mas, independentemente do que der, talvez seja a hora de
baixar a guarda e novamente dar algum crédito àquela máxima adorada pelas
mulheres (e também, por alguns fanáticos religiosos): “o amor nos libertará.”
Palpitando em um tema no qual não sou nenhuma autoridade –
veja meu currículo, parcialmente descrito acima –, creio que o amor (o
verdadeiro amor, não o das lojas Renner) pouco tem a ver com filhos e
casamentos. Talvez seja mais um contraponto fundamental para o torno que nos
esmaga dia a dia.
O torno da apreensão, da desconfiança e (principalmente) do isolamento que nos auto-impomos, sempre com os punhos
fechados e a guarda levantada.
Parafraseando David Bowie e o Queen naquele hit de 1982,
"Under Pressure": o amor é uma palavra antiquada (eu iria até mais longe: "constrangedora"). Mas, em um mundo de tristeza, brutalidade e indiferença,
também é algo que nos desafia a ir em frente e a nos importar.
Ok, é ridículo porque sou eu que estou dizendo.
Mas olha o que acontece quando o David Bowie e o Freddie
Mercury (saudosa bichona!) assumem o vocal.
É isso aí: “Why can't we give love one more chance?
That’s our last dance!”