O HOMEM, A LENDA, OS FILMES, OS CASOS...
A criação magistral de Conan Doyle: a razão sobre os instintos
Você conhece o homem. Ele tem mais de um 1,80m, é esguio,
possui olhos penetrantes e perfil aquilino. O queixo é anguloso, indicando um
caráter firme e determinado, e sua inteligência, capacidade dedutiva e cultura
geral em campos distintos como a química e a arte dos disfarces o colocam no
topo de sua profissão: frustrar planos criminosos, não raro engendrados por
psicopatas e, ao menos, por um gênio do mal, líder de uma organização
criminosa. Você pensou em Batman ou James Bond? Bem, errou por algumas dezenas
de anos. Falamos do modelo essencial para todos os heróis contemporâneos que,
direta ou indiretamente, beberam inspiração em seus feitos. O nome é Holmes.
Sherlock Holmes.
Criação do médico e escritor Arthur Conan Doyle (1859-1930)
e parcialmente inspirado em uma figura real – o Dr. Joseph Bell, cirurgião e
professor da Universidade de Edimburgo, Escócia (onde Conan Doyle ingressou em
1876), cujos métodos analíticos impressionaram o autor, Sherlock Holmes é um
personagem notório na linha evolutiva da ficção policial. Antes havia o
detetive francês Lupin, que elucidou os “Assassinatos da Rua Morgue” (uma obra
referencial de Edgar Allan Poe, editada em 1841), além de contos dispersos no
folclore que mostravam indivíduos utilizando a razão – e não os punhos – para
resolver enigmas. Mas Holmes cristalizou essas tendências em uma fórmula coesa
– mais ou menos o que o Conde Drácula fez com os relatos esparsos sobre
vampiros contados por viajantes da Europa Central, o que definiu as bases para
qualquer boa trama do gênero.
No entanto, mais do que o conde sanguessuga, Holmes foi uma
criação tão coerente que, por muito tempo, houve quem acreditasse que ele
realmente existiu. Além da repercussão dos textos de Conan Doyle a partir de
1889, quando Londres se “encolheu” frente aos crimes brutais de Jack, o
Estripador (dois anos, portanto, após a publicação da primeira trama de Holmes,
"Um Estudo em Vermelho", de 1887), a confusão entre “ficção” e
“realidade” pode ser creditada ao modo preciso com o qual o autor descreveu a
rotina de seu herói e de seu fiel escudeiro (o não muito brilhante Dr. Watson)
naquele apartamento em Baker Street, número 221B.
* * *
A exemplo de outros heróis literários – como o já referido
Bond, um legítimo sucessor de Holmes na tradição dos romances de mistério
ingleses –, nosso detetive ganhou contornos mais definidos ao longo de sua
bibliografia, adquirindo um caráter complexo nas últimas histórias (vale
lembrar que, embora sejam totalmente antagônicos em uma primeira análise, há
paralelos surpreendentes entre os Sherlock Holmes e James Bond literários, tese
provada no interessante livro-ensaio “Did He Really Live Twice?”, de John
Bryan).
Por exemplo: a noção de que Holmes é incapaz de atos
violentos é uma crendice popular, cunhada por incontáveis interpretações do
personagem no cinema (muitas delas, assumidas paródias). Segundo seu criador, o
detetive, mesmo sendo um discípulo da lógica, mantinha-se sempre em forma, era
um ótimo boxeador, esgrimista e adepto do Baritsu, tipo de luta praticado com
bastões. O que não quer dizer, é claro, que Holmes fosse um tipo de Allan
Quatermain (suas técnicas eram mais sutis; era com o cérebro que ele desbancava
os inimigos). Mas Sherlock tinha facetas só conhecidas dos aficionados pelo
personagem, ou de quem leu a integridade de sua obra.
E no que diz respeito aos “sherlockmaníacos”: se você cultua
fenômenos “pop” como Star Wars ou O Senhor dos Anéis, saiba que, nem de longe,
sua torcida supera a de Holmes, Watson e Cia. Os fãs de Conan Doyle estão por
aí há mais de um século e, nesse tempo, andaram trocando ideias e discutindo o
vasto legado ficcional do autor. Uma busca nas páginas brasileiras da Internet
já revela sites fantásticos e listas de discussão bem interessantes sobre o
herói – e isto se repete em todo o mundo.
Com paixão, os fãs estudam cada aspecto do Holmes “mítico” –
inclusive, sua sexualidade, sobre a qual existe alguma controvérsia: Sherlock,
decididamente, não simpatizava com mulheres. Seja pelo machismo da época ou por
problemas com o sexo oposto, ele as definia em termos, digamos, nada “polidos”:
“nunca se pode confiar demasiadamente nas mulheres, nem nas melhores delas”,
teoriza Holmes em “O Signo dos Quatro”. Provavelmente, a complexa natureza
feminina era um mistério tão intrincado que nem Sherlock Holmes foi capaz de
decifrá-la!
* * *
O material de pesquisa sobre o qual se debruçam os experts é
chamado de “o cânone” (para não iniciados: os quatro romances e 56 historietas
sobre o personagem). E, de fato, é bom que exista gente assim aí fora,
considerando o “gato e sapato” a que o teatro, o cinema e as histórias em
quadrinhos submeteram a criação de Sir Arthur nas últimas décadas. Personagens
como Holmes são irresistíveis a “reinvenções” – e estas podem ser genialmente
concebidas, como “A Solução Sete Por Cento” (obra de Nicholas Meyer publicada
em 1974), que promove o encontro entre Sherlock, já decadente e com a lucidez
afetada pelo vício em cocaína, e o iminente Sigmund Freud, pai da psicanálise;
ou totalmente desastrosas, como os embates entre o detetive e o Rei dos
Vampiros nas histórias em quadrinhos e na ficção de Loren D. Estleman,
“Sherlock Holmes Vs Drácula” (um autêntico “samba do detetive doido”).
Em ousadia e imaginação, resultados mais expressivos foram
obtidos por filmes como A Vida Íntima de Sherlock Holmes (1970), de Billy
Wilder (o diretor de Irma La Douce e Se Meu Apartamento Falasse), que juntou, em
um mesmo frame, a implicância do herói com mulheres, uma sociedade secreta e o
Monstro de Loch Ness; Assassinato Por Decreto, de 1979 (em que Holmes,
interpretado por Christopher Plummer, persegue Jack, o Estripador); e na saga
“Liga Extraordinária”, em que Alan Moore e Kevin O’Neal convocam os grandes
ícones da literatura europeia e os reúnem em uma espécie de “dream team” contra
o crime.
Sem contar, claro, a comédia O Irmão Mais Esperto de
Sherlock Holmes (1975), dirigida e estrelada por Gene Wilder, os jogos para PC
(“Sherlock Holmes Vs. Jack the Ripper” / “Sherlock Holmes Contra Jack, O
Estripador”) e o nosso “O Xangô de Baker Street”, livro de Jô Soares que trouxe
o emérito detetive ao Brasil, apresentou-o à culinária local e (Heresia!
Heresia!) tirou-lhe a virgindade. Enfim: são tantas as releituras que é bom, de
vez em quando, voltar às origens e reencontrar o “autêntico” Sherlock.
Determinar “quais” são as aventuras literárias essenciais de
Sherlock Holmes é meter a mão em vespeiro. Afinal, cada leitor tem o seu
próprio ranking de grandes façanhas “sherlockianas”. O certo é recorrer ao
“cânone” e mergulhar de vez em todas as novelas e contos.
Especialistas no personagem e em Conan Doyle, porém, dão
distinção a certas tramas, não apenas por sua inventividade, como por fatores
relevantes na cronologia do herói e pelo próprio fato de o autor ter
manifestado apreço por elas. Só acrescentei a esta lista básica a primeira
aventura de Holmes (único romance do pacote – os demais títulos são historietas),
“Um Estudo em Vermelho”, que apresentou o superdetetive a um mundo que insiste
em não esquecê-lo.
“Um Estudo em Vermelho” (1887): Sherlock e Watson investigam
as circunstâncias de um homicídio enigmático: não há ferimentos no corpo
(embora a cena do crime tenha vestígios de sangue) e tampouco foi um
latrocínio, já que, aparentemente nenhum pertence da vítima foi roubado. Eis o
cenário para Holmes por em prática seus métodos de observação e dedução – e
para Conan Doyle estabelecer um estilo de narrativa vitorioso, que
revolucionaria o gênero policial.
"Um Escândalo na Boêmia" (1891): Irene Adler,
protagonista do conto, foi das poucas mulheres que “balançaram” o cerebral
detetive – embora não seja esta a interpretação do Dr. Watson: “não que ele
estivesse apaixonado por Irene Adler... Todas as emoções, e particularmente
essa, aborreciam sua mente fria, precisa, mas admiravelmente equilibrada",
pondera o aliado de Holmes, em “Um Escândalo na Boêmia”. Irene tem um
envolvimento com o Rei da Boêmia e se dispõe a utilizar provas desse affair
para impedir o casamento do monarca. Sherlock intervém e consegue evitar o
escândalo – mas não sai ileso (ao menos, emocionalmente) desta aventura.
"A Liga dos Cabeça-Vermelha" (1891): trama que
seria reeditada em um sem-número de filmes, como Efeito Dominó (2008) e o ótimo
Trapaceiros (2000), de Woody Allen. Sherlock Holmes investiga penhorista que
recebe uma polpuda gratificação para se dedicar a uma tarefa inútil: ir
regularmente a um escritório em Londres e copiar a Enciclopédia Britânica!
Eventualmente, Holmes descobre que há um plano em andamento para utilizar sua
loja como “base” para a escavação de um túnel, que conduzirá gatunos aos cofres
de um banco local. O plano é arquitetado por John Clay (“assassino, ladrão,
estrangulador e falsário”).
"A Faixa Malhada" (1892): Helen Stoner recorre a
Sherlock Holmes quando seu padrasto, um homem de difícil trato, exige que ela
ocupe o quarto onde a irmã gêmea dormiu antes de morrer. O detetive e Watson se
infiltram no cômodo e solucionam o caso em uma interessante reviravolta, na
qual o vilão, literalmente, “experimenta o próprio veneno”.
"O Problema Final" (1893): todo herói que se preze
tem um arqui-inimigo – e o de Sherlock lhe fazia jus em astúcia e intelecto: o
Professor James Moriarty era chefe de uma organização responsável por vários
crimes não solucionados. Em “O Problema Final”, ambos se confrontam em um duelo
épico nas Cataratas Reichenbach, na Suíça, e são dados como mortos por três
anos. Eventualmente (e para a alegria dos fãs), Holmes reapareceu em “A Casa
Vazia” (quando descobrimos que, após o incidente nas cataratas, ele se safara
milagrosamente da morte).
"A Casa Vazia" (1903): mesmo cansado de Sherlock
Holmes – que, segundo ele, nivelava por baixo suas habilidades literárias e
narrativas (o gênero policial, de fato, carecia de reconhecimento na época) –,
Arthur Conan Doyle foi obrigado a ressuscitá-lo nesta trama: na época, o herói
já se infiltrara de modo agressivo no imaginário popular inglês. Os pontos
altos são o reaparecimento do personagem a um atônito Watson – que, como os
leitores, julgava-o morto – e as artimanhas que utiliza para ludibriar os
capangas de Moriarty, que ainda estão atrás dele.
(Este artigo foi originalmente publicado em "Set - Cinema e Vídeo")