terça-feira, 23 de abril de 2013

Literatura - Sherlock Holmes



O HOMEM, A LENDA, OS FILMES, OS CASOS...




A criação magistral de Conan Doyle: a razão sobre os instintos



Você conhece o homem. Ele tem mais de um 1,80m, é esguio, possui olhos penetrantes e perfil aquilino. O queixo é anguloso, indicando um caráter firme e determinado, e sua inteligência, capacidade dedutiva e cultura geral em campos distintos como a química e a arte dos disfarces o colocam no topo de sua profissão: frustrar planos criminosos, não raro engendrados por psicopatas e, ao menos, por um gênio do mal, líder de uma organização criminosa. Você pensou em Batman ou James Bond? Bem, errou por algumas dezenas de anos. Falamos do modelo essencial para todos os heróis contemporâneos que, direta ou indiretamente, beberam inspiração em seus feitos. O nome é Holmes. Sherlock Holmes. 

Criação do médico e escritor Arthur Conan Doyle (1859-1930) e parcialmente inspirado em uma figura real – o Dr. Joseph Bell, cirurgião e professor da Universidade de Edimburgo, Escócia (onde Conan Doyle ingressou em 1876), cujos métodos analíticos impressionaram o autor, Sherlock Holmes é um personagem notório na linha evolutiva da ficção policial. Antes havia o detetive francês Lupin, que elucidou os “Assassinatos da Rua Morgue” (uma obra referencial de Edgar Allan Poe, editada em 1841), além de contos dispersos no folclore que mostravam indivíduos utilizando a razão – e não os punhos – para resolver enigmas. Mas Holmes cristalizou essas tendências em uma fórmula coesa – mais ou menos o que o Conde Drácula fez com os relatos esparsos sobre vampiros contados por viajantes da Europa Central, o que definiu as bases para qualquer boa trama do gênero.

No entanto, mais do que o conde sanguessuga, Holmes foi uma criação tão coerente que, por muito tempo, houve quem acreditasse que ele realmente existiu. Além da repercussão dos textos de Conan Doyle a partir de 1889, quando Londres se “encolheu” frente aos crimes brutais de Jack, o Estripador (dois anos, portanto, após a publicação da primeira trama de Holmes, "Um Estudo em Vermelho", de 1887), a confusão entre “ficção” e “realidade” pode ser creditada ao modo preciso com o qual o autor descreveu a rotina de seu herói e de seu fiel escudeiro (o não muito brilhante Dr. Watson) naquele apartamento em Baker Street, número 221B.

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A exemplo de outros heróis literários – como o já referido Bond, um legítimo sucessor de Holmes na tradição dos romances de mistério ingleses –, nosso detetive ganhou contornos mais definidos ao longo de sua bibliografia, adquirindo um caráter complexo nas últimas histórias (vale lembrar que, embora sejam totalmente antagônicos em uma primeira análise, há paralelos surpreendentes entre os Sherlock Holmes e James Bond literários, tese provada no interessante livro-ensaio “Did He Really Live Twice?”, de John Bryan).

Por exemplo: a noção de que Holmes é incapaz de atos violentos é uma crendice popular, cunhada por incontáveis interpretações do personagem no cinema (muitas delas, assumidas paródias). Segundo seu criador, o detetive, mesmo sendo um discípulo da lógica, mantinha-se sempre em forma, era um ótimo boxeador, esgrimista e adepto do Baritsu, tipo de luta praticado com bastões. O que não quer dizer, é claro, que Holmes fosse um tipo de Allan Quatermain (suas técnicas eram mais sutis; era com o cérebro que ele desbancava os inimigos). Mas Sherlock tinha facetas só conhecidas dos aficionados pelo personagem, ou de quem leu a integridade de sua obra.

E no que diz respeito aos “sherlockmaníacos”: se você cultua fenômenos “pop” como Star Wars ou O Senhor dos Anéis, saiba que, nem de longe, sua torcida supera a de Holmes, Watson e Cia. Os fãs de Conan Doyle estão por aí há mais de um século e, nesse tempo, andaram trocando ideias e discutindo o vasto legado ficcional do autor. Uma busca nas páginas brasileiras da Internet já revela sites fantásticos e listas de discussão bem interessantes sobre o herói – e isto se repete em todo o mundo.

Com paixão, os fãs estudam cada aspecto do Holmes “mítico” – inclusive, sua sexualidade, sobre a qual existe alguma controvérsia: Sherlock, decididamente, não simpatizava com mulheres. Seja pelo machismo da época ou por problemas com o sexo oposto, ele as definia em termos, digamos, nada “polidos”: “nunca se pode confiar demasiadamente nas mulheres, nem nas melhores delas”, teoriza Holmes em “O Signo dos Quatro”. Provavelmente, a complexa natureza feminina era um mistério tão intrincado que nem Sherlock Holmes foi capaz de decifrá-la!

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O material de pesquisa sobre o qual se debruçam os experts é chamado de “o cânone” (para não iniciados: os quatro romances e 56 historietas sobre o personagem). E, de fato, é bom que exista gente assim aí fora, considerando o “gato e sapato” a que o teatro, o cinema e as histórias em quadrinhos submeteram a criação de Sir Arthur nas últimas décadas. Personagens como Holmes são irresistíveis a “reinvenções” – e estas podem ser genialmente concebidas, como “A Solução Sete Por Cento” (obra de Nicholas Meyer publicada em 1974), que promove o encontro entre Sherlock, já decadente e com a lucidez afetada pelo vício em cocaína, e o iminente Sigmund Freud, pai da psicanálise; ou totalmente desastrosas, como os embates entre o detetive e o Rei dos Vampiros nas histórias em quadrinhos e na ficção de Loren D. Estleman, “Sherlock Holmes Vs Drácula” (um autêntico “samba do detetive doido”).

Em ousadia e imaginação, resultados mais expressivos foram obtidos por filmes como A Vida Íntima de Sherlock Holmes (1970), de Billy Wilder (o diretor de Irma La Douce e Se Meu Apartamento Falasse), que juntou, em um mesmo frame, a implicância do herói com mulheres, uma sociedade secreta e o Monstro de Loch Ness; Assassinato Por Decreto, de 1979 (em que Holmes, interpretado por Christopher Plummer, persegue Jack, o Estripador); e na saga “Liga Extraordinária”, em que Alan Moore e Kevin O’Neal convocam os grandes ícones da literatura europeia e os reúnem em uma espécie de “dream team” contra o crime.

Sem contar, claro, a comédia O Irmão Mais Esperto de Sherlock Holmes (1975), dirigida e estrelada por Gene Wilder, os jogos para PC (“Sherlock Holmes Vs. Jack the Ripper” / “Sherlock Holmes Contra Jack, O Estripador”) e o nosso “O Xangô de Baker Street”, livro de Jô Soares que trouxe o emérito detetive ao Brasil, apresentou-o à culinária local e (Heresia! Heresia!) tirou-lhe a virgindade. Enfim: são tantas as releituras que é bom, de vez em quando, voltar às origens e reencontrar o “autêntico” Sherlock.


Determinar “quais” são as aventuras literárias essenciais de Sherlock Holmes é meter a mão em vespeiro. Afinal, cada leitor tem o seu próprio ranking de grandes façanhas “sherlockianas”. O certo é recorrer ao “cânone” e mergulhar de vez em todas as novelas e contos.

Especialistas no personagem e em Conan Doyle, porém, dão distinção a certas tramas, não apenas por sua inventividade, como por fatores relevantes na cronologia do herói e pelo próprio fato de o autor ter manifestado apreço por elas. Só acrescentei a esta lista básica a primeira aventura de Holmes (único romance do pacote – os demais títulos são historietas), “Um Estudo em Vermelho”, que apresentou o superdetetive a um mundo que insiste em não esquecê-lo.

“Um Estudo em Vermelho” (1887): Sherlock e Watson investigam as circunstâncias de um homicídio enigmático: não há ferimentos no corpo (embora a cena do crime tenha vestígios de sangue) e tampouco foi um latrocínio, já que, aparentemente nenhum pertence da vítima foi roubado. Eis o cenário para Holmes por em prática seus métodos de observação e dedução – e para Conan Doyle estabelecer um estilo de narrativa vitorioso, que revolucionaria o gênero policial.

"Um Escândalo na Boêmia" (1891): Irene Adler, protagonista do conto, foi das poucas mulheres que “balançaram” o cerebral detetive – embora não seja esta a interpretação do Dr. Watson: “não que ele estivesse apaixonado por Irene Adler... Todas as emoções, e particularmente essa, aborreciam sua mente fria, precisa, mas admiravelmente equilibrada", pondera o aliado de Holmes, em “Um Escândalo na Boêmia”. Irene tem um envolvimento com o Rei da Boêmia e se dispõe a utilizar provas desse affair para impedir o casamento do monarca. Sherlock intervém e consegue evitar o escândalo – mas não sai ileso (ao menos, emocionalmente) desta aventura. 

"A Liga dos Cabeça-Vermelha" (1891): trama que seria reeditada em um sem-número de filmes, como Efeito Dominó (2008) e o ótimo Trapaceiros (2000), de Woody Allen. Sherlock Holmes investiga penhorista que recebe uma polpuda gratificação para se dedicar a uma tarefa inútil: ir regularmente a um escritório em Londres e copiar a Enciclopédia Britânica! Eventualmente, Holmes descobre que há um plano em andamento para utilizar sua loja como “base” para a escavação de um túnel, que conduzirá gatunos aos cofres de um banco local. O plano é arquitetado por John Clay (“assassino, ladrão, estrangulador e falsário”).

"A Faixa Malhada" (1892): Helen Stoner recorre a Sherlock Holmes quando seu padrasto, um homem de difícil trato, exige que ela ocupe o quarto onde a irmã gêmea dormiu antes de morrer. O detetive e Watson se infiltram no cômodo e solucionam o caso em uma interessante reviravolta, na qual o vilão, literalmente, “experimenta o próprio veneno”.

"O Problema Final" (1893): todo herói que se preze tem um arqui-inimigo – e o de Sherlock lhe fazia jus em astúcia e intelecto: o Professor James Moriarty era chefe de uma organização responsável por vários crimes não solucionados. Em “O Problema Final”, ambos se confrontam em um duelo épico nas Cataratas Reichenbach, na Suíça, e são dados como mortos por três anos. Eventualmente (e para a alegria dos fãs), Holmes reapareceu em “A Casa Vazia” (quando descobrimos que, após o incidente nas cataratas, ele se safara milagrosamente da morte). 

"A Casa Vazia" (1903): mesmo cansado de Sherlock Holmes – que, segundo ele, nivelava por baixo suas habilidades literárias e narrativas (o gênero policial, de fato, carecia de reconhecimento na época) –, Arthur Conan Doyle foi obrigado a ressuscitá-lo nesta trama: na época, o herói já se infiltrara de modo agressivo no imaginário popular inglês. Os pontos altos são o reaparecimento do personagem a um atônito Watson – que, como os leitores, julgava-o morto – e as artimanhas que utiliza para ludibriar os capangas de Moriarty, que ainda estão atrás dele.

(Este artigo foi originalmente publicado em "Set - Cinema e Vídeo")