"ESTÁ LIBERADO, JOÃO"
De repente faz um silêncio danado aqui na redação.
Coisa engraçada: o ar lá fora também está parado, ainda que
carregado de nuvens – é como se o dia tivesse contido a respiração e,
respeitoso, anuísse simpático ao nosso pesar. Não se ouve uma música, um som de
carro sequer. E isso me parece certo, pois, na ótica de alguns de nós, o mundo
ficou mais triste esta semana.
É que João Lisboa – o nosso “Johnny” Lisboa, fotógrafo,
aventureiro e fanático pela vida – foi embora. Partiu. E o prejuízo é todo
nosso: falo por cada espírito tristonho nesta sala (notei que os olhares se
evitam; cada um busca um refúgio constrangedor em seu teclado, monitor ou
telefone celular, como se essas coisas tivessem qualquer utilidade nessa
hora...) quando afirmo que a natureza nos pregou uma peça: gente como o João
não pode morrer.
O que deu errado?
Como assim?
* * *
Quatro infartos (e uma sucessão inacreditável de acidentes
seriíssimos) não puderam exaurir a vida daquele corpo até ontem de manhã. Chegou
um ponto em que a imortalidade do João virou piada entre nós – entre nós e ele.
Parecia mais fácil matar o Super-Homem que tirar o João de
cena; parecia mais fácil abrir o supercílio de Hércules com um gancho de
direita que causar uma escoriação em nosso colega imortal. Ele ria. E seu olhar
dizia outra coisa – mas, então, não entendíamos o quê. Dizia – nos avisava –
que um dia esse planetinha de possibilidades limitadas não seria o suficiente.
Era muita vida represada em um só corpo. Mais dia, menos dia, a pressão teria
que ser liberada.
Ele sabia. O tempo todo.
* * *
Mas, e agora, João?
Como lidamos com a perda, se você era aquele tipo de sujeito
que, quando se levanta de uma mesa, deixa um buraco equivalente a cinco
pessoas?
E agora, João?
Quem vai me explicar casualmente – descarregando um pen
drive em meu computador ou decidindo-se entre uma lente e outra, sempre
mantendo o tema da foto sob um olhar indireto, mas atento –, como era a Vila
Madalena nos anos 70, como se faz para domar um labrador indisciplinado, como
se escreve e se publica um livro de poesia com recursos próprios ou como se
sobrevive a um tiro ou a uma facada?
Eu contava com você pra continuar me dizendo essas coisas no
café. Para me roubar do meu posto no meio do expediente – para aquele
cigarrinho amigo – e olha só o que você fez: se mandou da festa sem me avisar.
Puta sacanagem, João. Só te perdoo porque sei que outro igual a você, só
trombarei na próxima encarnação. E se esse negócio de encarnação for pra valer,
peço a Deus que o “outro” seja você mesmo, de novo, em uma versão ainda mais
escandalosa e sem cortes. Você era o tipo de filme que a gente assiste duas,
três vezes, de boa. Um puta filme de ação que a gente recomenda aos amigos na
hora do almoço, que vira tópico de discussão em uma festa.
* * *
Fato é, João, que nunca mais vou olhar para a tua cara e ver
aquele sorriso franco que você exibia quando juntava suas coisas e se mandava
da redação. “E aí? Estou liberado?” – Rá! Como se a minha permissão (ou de
qualquer outra pessoa) ditasse o que você fazia ou não. O que é muito chato,
claro, mas que vou relevar em nome de tudo o que você deixou para trás.
Vejamos: doses maciças de hombridade, honestidade, caráter e
determinação; uma história muito bacana de companheirismo construtivo com sua
esposa, que também foi sua modelo e que você transmutou em arte; todas as suas
contribuições às revistas em que trabalho (e que me garantem o sustento), na
forma de imagens que deram relevância decisiva às palavras que escrevi aqui; e
um exemplo épico de personalidade, profissionalismo e carisma para seu filho,
que segue seus passos e, posso apostar, um dia será um grande homem, como você
foi.
Obrigado por ter sido meu amigo – obrigado por “tanto”.
Espero mesmo um dia vê-lo de novo – mas, se não vir, tudo o
que presenciei aqui já é suficiente para que eu propague sua lenda. Deixa
comigo, velhaco: você tirava grandes fotos, mas eu sou o "cara das
letras" (palavras suas). Você era talentoso em muitas áreas, mas aposto que não seria capaz de contar às pessoas com minha
eloquência “como” era o mundo segundo João Lisboa.
Agora sim, João: agora sim, você está “liberado”.
* * *
Em tempo: para nós, você continua a ser imortal.
Agora, mais do que nunca.