terça-feira, 23 de abril de 2013

Crônica - João Lisboa



"ESTÁ LIBERADO, JOÃO"




De repente faz um silêncio danado aqui na redação.

Coisa engraçada: o ar lá fora também está parado, ainda que carregado de nuvens – é como se o dia tivesse contido a respiração e, respeitoso, anuísse simpático ao nosso pesar. Não se ouve uma música, um som de carro sequer. E isso me parece certo, pois, na ótica de alguns de nós, o mundo ficou mais triste esta semana.

É que João Lisboa – o nosso “Johnny” Lisboa, fotógrafo, aventureiro e fanático pela vida – foi embora. Partiu. E o prejuízo é todo nosso: falo por cada espírito tristonho nesta sala (notei que os olhares se evitam; cada um busca um refúgio constrangedor em seu teclado, monitor ou telefone celular, como se essas coisas tivessem qualquer utilidade nessa hora...) quando afirmo que a natureza nos pregou uma peça: gente como o João não pode morrer.

O que deu errado?

Como assim?

* * *

Quatro infartos (e uma sucessão inacreditável de acidentes seriíssimos) não puderam exaurir a vida daquele corpo até ontem de manhã. Chegou um ponto em que a imortalidade do João virou piada entre nós – entre nós e ele.

Parecia mais fácil matar o Super-Homem que tirar o João de cena; parecia mais fácil abrir o supercílio de Hércules com um gancho de direita que causar uma escoriação em nosso colega imortal. Ele ria. E seu olhar dizia outra coisa – mas, então, não entendíamos o quê. Dizia – nos avisava – que um dia esse planetinha de possibilidades limitadas não seria o suficiente. Era muita vida represada em um só corpo. Mais dia, menos dia, a pressão teria que ser liberada.

Ele sabia. O tempo todo.

* * *

Mas, e agora, João?

Como lidamos com a perda, se você era aquele tipo de sujeito que, quando se levanta de uma mesa, deixa um buraco equivalente a cinco pessoas?

E agora, João?

Quem vai me explicar casualmente – descarregando um pen drive em meu computador ou decidindo-se entre uma lente e outra, sempre mantendo o tema da foto sob um olhar indireto, mas atento –, como era a Vila Madalena nos anos 70, como se faz para domar um labrador indisciplinado, como se escreve e se publica um livro de poesia com recursos próprios ou como se sobrevive a um tiro ou a uma facada?

Eu contava com você pra continuar me dizendo essas coisas no café. Para me roubar do meu posto no meio do expediente – para aquele cigarrinho amigo – e olha só o que você fez: se mandou da festa sem me avisar. Puta sacanagem, João. Só te perdoo porque sei que outro igual a você, só trombarei na próxima encarnação. E se esse negócio de encarnação for pra valer, peço a Deus que o “outro” seja você mesmo, de novo, em uma versão ainda mais escandalosa e sem cortes. Você era o tipo de filme que a gente assiste duas, três vezes, de boa. Um puta filme de ação que a gente recomenda aos amigos na hora do almoço, que vira tópico de discussão em uma festa.

* * *

Fato é, João, que nunca mais vou olhar para a tua cara e ver aquele sorriso franco que você exibia quando juntava suas coisas e se mandava da redação. “E aí? Estou liberado?” – Rá! Como se a minha permissão (ou de qualquer outra pessoa) ditasse o que você fazia ou não. O que é muito chato, claro, mas que vou relevar em nome de tudo o que você deixou para trás.

Vejamos: doses maciças de hombridade, honestidade, caráter e determinação; uma história muito bacana de companheirismo construtivo com sua esposa, que também foi sua modelo e que você transmutou em arte; todas as suas contribuições às revistas em que trabalho (e que me garantem o sustento), na forma de imagens que deram relevância decisiva às palavras que escrevi aqui; e um exemplo épico de personalidade, profissionalismo e carisma para seu filho, que segue seus passos e, posso apostar, um dia será um grande homem, como você foi.

Obrigado por ter sido meu amigo – obrigado por “tanto”.

Espero mesmo um dia vê-lo de novo – mas, se não vir, tudo o que presenciei aqui já é suficiente para que eu propague sua lenda. Deixa comigo, velhaco: você tirava grandes fotos, mas eu sou o "cara das letras" (palavras suas). Você era talentoso em muitas áreas, mas aposto que não seria capaz de contar às pessoas com minha eloquência “como” era o mundo segundo João Lisboa.

Agora sim, João: agora sim, você está “liberado”.

* * *

Em tempo: para nós, você continua a ser imortal.

Agora, mais do que nunca.