terça-feira, 23 de abril de 2013

Crônica - "O Santo e o Pecador"



O SANTO E O PECADOR



Era uma celebridade midiática, dessas que estão nos jornais, nas revistas de fofocas e que têm programas na TV. Com uma única e inusitada exceção, visto que aqueles eram tempos estranhos, muito estranhos, mesmo: era padre.

Cantava, dançava, coreografava e acontecia. Até que morreu, pois este é mesmo o destino de todos nós, até dos que são notícia em “Quem Acontece” e frequentam as festas na Ilha de Caras. Minutos após o óbito, a carne começou a enrijecer, a cútis bem tratada adquiriu uma tonalidade pálida, puxando para o azulado, e ele começou a feder. Não era sua culpa, claro – apenas a inflexível biologia provando a superioridade da matéria sobre o espírito.

Pois em verdade, em verdade, vos digo: a biologia não lê a revista “Caras”.

* * *

Morto e desperto no Além, nosso célebre pontífice fez valer seus direitos de homem-santo ilustre. Como porta-voz oficial da doutrina, quis porque quis conhecer Jesus. Os assessores do Filho do Homem tentaram demovê-lo daquela ideia maluca – não porque Jesus fosse inacessível, mas por ser um sujeito muito ocupado. No entanto, tantas ele fez, tantos e tão desesperados foram seus lamentos, que fizeram por arrumar-lhe uma entrevista com o Filho do Homem.

Conduzido à casa de Jesus – morada bem simplezinha, diga-se de passagem –, o pontífice superstar não se fez de rogado: atirou-se logo ao chão, beijou, apalpou as vestes de Nosso Senhor.

“_Inenarrável o prazer de estar em Tua companhia, Oh, Senhor – eu, que entre os homens de minha época, fui o que mais Te propagou. Eu, mais que todos, pronunciei Teu Santo Nome, divulguei Tua Santa Doutrina, ai, ai, pobrezinho de mim!”

E chorava e chorava, inundando as sandálias de Nosso Senhor.

* * *

_ Levantai, levantai... Não dramatizai! – retorquiu Jesus, pondo de pé o padre e batendo o pó de suas vestes. _ Querias me ver, filho meu. Pois aqui estou. Em que posso servi-lo?

_ Servir-me, Senhor? Oh, não! Eu é que estou aqui para servi-lo. Como o fiz em minha estada na Terra, onde tive muito sucesso, convém salientar; e como espero seguir fazendo, se Vossa Iminência assim o permitir.

_ Não estou precisando de nada, filho. Agradeço a consideração, mas não preciso que me sirvas.

_ Ah, mas posso ser-lhe muito útil, Oh, Magnânimo! Tenho ampla experiência em comunicação – não quero me gabar, mas todos em meu país me conhecem.

_ Fico feliz, filho meu. Mas de fato não estou precisando de nada...

_ Se o Senhor me permite, Oh, Grandíssimo... – cortou rapidamente o padre, envolvendo o Filho do Homem em um abraço tentacular. – Tenho minhas próprias ideias para louvá-Lo e adorá-Lo. De fato, obtivemos grandes progressos na Terra inovando as formas de O louvar e O adorar. Ouviste porventura meu último disco? O hit “Pastor das Almas”. Olha, bombou até não poder mais...

_ De fato, Filho, não ouvi. Mas...

_ E se me permites a ousadia, Oh, Generalíssimo... – cortou novamente o pontífice. _ Acho que Vossos métodos de propagação da doutrina ficaram, digamos, um tanto empolados. A música “pop” e um approach mais agressivo de Marketing se fazem necessários. Não vistes, então, o sucesso de Lady Gaga? Ou da Amy Winehouse?

_ De fato, não vi...

_ Ou da Madona?

_ A Madona eu conheço. Obra antológica de Michelangelo.

_ Não, Senhor, não é a esta Madona que me refiro. Refiro-me à Madona do “Papa don’t preach” e do “Like a prayer”.

_ Hum... Acho que não conheço, também, mas o repertório Me parece familiar.

_ Seja como for: fui eu, também, um tipo de Madona lá na Terra. Mas uma Madona sacra, santificada, se é que me entendes... Fui um Santo Homem que esteve sob os holofotes.

_ Filho, concordei em te receber, mas insisto em que me acompanhes agora, pois temos assuntos a tratar e o tempo urge. Consentiria em me acompanhar por aquela alameda? Ela nos conduzirá ao nosso destino. E nesse meio tempo, se te agradas, ainda podemos trocar mais um dedinho de prosa...

E saíram os dois pela alameda, Jesus com as mãos para trás, o pontífice a gesticular, alucinado.

* * *

_ Faremos grandes coisas, eu e Tu, Altíssimo! – insistia o padre. _ Foi-se o tempo da manjedoura, da carpintaria, dos miseráveis. Estaremos juntos nos jornais e revistas, assim como nos especiais de fim de ano da Globo. Oh, Santíssimo... Com o senhor à frente, é claro, pois meu bordão nesta e na vida anterior é um só: tudo o que peço ao Senhor são dez coisas: humildade, humildade, humildade, humildade, humildade... (enumerando nos dedos).

_ Já entendi, filho. Podeis parar por aí.

_ Se quiseres, podemos ensaiar agora mesmo a coreografia dos nossos sermões. Veja só, Elevadíssimo, como me movimento rapidamente. Nem uma gazela ostentaria tal desenvoltura...

E saiu o pontífice a rodopiar pela alameda, mãos para o alto, dando Glória a Deus. Teria prosseguido por toda a eternidade se não notasse que Jesus caminhava cada vez mais rápido e à frente, como que a evitá-lo. Tomando-O pelas vestes, insistiu, possuído por um vívido entusiasmo:

_ É assim que O louvarão daqui para frente. Não é uma ideia magnânima? Se a dancinha não Te agrada, podemos contratar Merce Cunningham para elaborar a coreografia. Ele está morto, claro, mas certamente o encontraremos por aqui, em algum lugar...

_ Acho que não, filho. – retorquiu Jesus, mais lacônico do que nunca. – Também tenho um bordão, nesta e em qualquer vida. Foi algo que disse há muito tempo, em Cafarnaum: “Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar de pé, nas sinagogas e nos cantos das ruas para serem vistos pelos homens. Tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai; pois Ele, que vê o oculto, recompensar-te-á.”

_ Observação astuta, Mestre! Mas deixou de ser válida nos tempos atuais. Precisas conhecer o Twitter, o Facebook, o Orkut... Oh, Santíssimo... Como voltas Tuas costas para este fenômeno da era digital, as redes sociais? Ah, isto não está direito. Não está, não senhor...

_ É aqui que nos separamos, filho.

* * *

Tão empolgado estava o padre que não reparara no fim da alameda. Pois eis que a estrada chegara ao fim. E que diante deles, impassíveis e soltos no ar, estavam apenas dois elevadores Otis – modelos antigos, sim, porque o Além é ligeiramente mais anacrônico do que a Terra. Jesus fez menção de entrar no elevador da esquerda, no que foi imitado pelo pontífice. E pela primeira vez, o Filho do Homem deixou clara sua impaciência. Mandando às favas a diplomacia, ordenou:

_ Tu segues no outro.

O pontífice bateu na testa, bem-humorado. Parecia ter se dado conta de algo muito, muito engraçado:

_ Claro, Mestre! Quem sou eu para viajar no mesmo elevador que o Senhor? Ora: sou um humilde servo... Isto também costumava eu dizer frequentemente, lá na Terra.

_ Não é isso, Filho. Há espaço suficiente para os dois. Cá pra nós, nem ligo muito para essas questões de hierarquia, embora Meu Santo Pai seja mais suscetível a elas. Ocorre apenas que vemos realidades muito distintas e que não gostarias do Meu mundo – veja, ali ainda somos um pouco conservadores. Creio mesmo que o senhor se entediaria facilmente. Portanto, passar bem.

E tomou Jesus o elevador, rumo às alturas divinais.

O padre, por sua vez, ouviu o som de aço a ranger e viu as pesadas portas do elevador da direita se abrir, como a bocarra de um monstro fantástico. Um cheiro de enxofre delas se projetou, enquanto o sistema de som ambiente despejava os primeiros acordes de “Alejandro”, em versão instrumental.

Olhos baixos, resignado à própria sorte e sem conseguir encarar diretamente o ascensorista (embora sua simples presença fosse o bastante para arrepiar-lhe os cabelos da nuca), o padre murmurou – e sabia que aquela não era propriamente uma opção:

_ Desce!

“Quem escuta as Minhas palavras e as põe em prática é como o homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, engrossaram os rios, sopraram os ventos contra aquela casa; mas não caiu, porque estava fundada sobre a rocha. Aquele, porém, que ouve as Minhas palavras e não as põe em prática, é semelhante ao néscio que edificou a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, engrossaram os rios, sopraram os ventos contra aquela casa e ela desmoronou-se; e grande foi a sua ruína.”

(Jesus Cristo, um cara legal).