O SANTO E O PECADOR
Era uma celebridade midiática, dessas que estão nos jornais, nas revistas de fofocas e que têm programas na TV. Com uma única e inusitada exceção, visto que aqueles eram tempos estranhos, muito estranhos, mesmo: era padre.
Cantava, dançava, coreografava e acontecia. Até que morreu,
pois este é mesmo o destino de todos nós, até dos que são notícia em “Quem
Acontece” e frequentam as festas na Ilha de Caras. Minutos após o óbito, a
carne começou a enrijecer, a cútis bem tratada adquiriu uma tonalidade pálida,
puxando para o azulado, e ele começou a feder. Não era sua culpa, claro –
apenas a inflexível biologia provando a superioridade da matéria sobre o
espírito.
Pois em verdade, em verdade, vos digo: a biologia não lê a
revista “Caras”.
* * *
Morto e desperto no Além, nosso célebre pontífice fez valer
seus direitos de homem-santo ilustre. Como porta-voz oficial da doutrina, quis
porque quis conhecer Jesus. Os assessores do Filho do Homem tentaram demovê-lo
daquela ideia maluca – não porque Jesus fosse inacessível, mas por ser um
sujeito muito ocupado. No entanto, tantas ele fez, tantos e tão desesperados
foram seus lamentos, que fizeram por arrumar-lhe uma entrevista com o Filho do
Homem.
Conduzido à casa de Jesus – morada bem simplezinha, diga-se
de passagem –, o pontífice superstar não se fez de rogado: atirou-se logo ao
chão, beijou, apalpou as vestes de Nosso Senhor.
“_Inenarrável o prazer de estar em Tua companhia, Oh, Senhor
– eu, que entre os homens de minha época, fui o que mais Te propagou. Eu, mais
que todos, pronunciei Teu Santo Nome, divulguei Tua Santa Doutrina, ai, ai,
pobrezinho de mim!”
E chorava e chorava, inundando as sandálias de Nosso Senhor.
* * *
_ Levantai, levantai... Não dramatizai! – retorquiu Jesus,
pondo de pé o padre e batendo o pó de suas vestes. _ Querias me ver, filho meu.
Pois aqui estou. Em que posso servi-lo?
_ Servir-me, Senhor? Oh, não! Eu é que estou aqui para
servi-lo. Como o fiz em minha estada na Terra, onde tive muito sucesso, convém
salientar; e como espero seguir fazendo, se Vossa Iminência assim o permitir.
_ Não estou precisando de nada, filho. Agradeço a
consideração, mas não preciso que me sirvas.
_ Ah, mas posso ser-lhe muito útil, Oh, Magnânimo! Tenho
ampla experiência em comunicação – não quero me gabar, mas todos em meu país me
conhecem.
_ Fico feliz, filho meu. Mas de fato não estou precisando de
nada...
_ Se o Senhor me permite, Oh, Grandíssimo... – cortou
rapidamente o padre, envolvendo o Filho do Homem em um abraço tentacular. –
Tenho minhas próprias ideias para louvá-Lo e adorá-Lo. De fato, obtivemos
grandes progressos na Terra inovando as formas de O louvar e O adorar. Ouviste
porventura meu último disco? O hit “Pastor das Almas”. Olha, bombou até não
poder mais...
_ De fato, Filho, não ouvi. Mas...
_ E se me permites a ousadia, Oh, Generalíssimo... – cortou
novamente o pontífice. _ Acho que Vossos métodos de propagação da doutrina
ficaram, digamos, um tanto empolados. A música “pop” e um approach mais agressivo
de Marketing se fazem necessários. Não vistes, então, o sucesso de Lady Gaga?
Ou da Amy Winehouse?
_ De fato, não vi...
_ Ou da Madona?
_ A Madona eu conheço. Obra antológica de Michelangelo.
_ Não, Senhor, não é a esta Madona que me refiro. Refiro-me
à Madona do “Papa don’t preach” e do “Like a prayer”.
_ Hum... Acho que não conheço, também, mas o repertório Me
parece familiar.
_ Seja como for: fui eu, também, um tipo de Madona lá na
Terra. Mas uma Madona sacra, santificada, se é que me entendes... Fui um Santo
Homem que esteve sob os holofotes.
_ Filho, concordei em te receber, mas insisto em que me
acompanhes agora, pois temos assuntos a tratar e o tempo urge. Consentiria em
me acompanhar por aquela alameda? Ela nos conduzirá ao nosso destino. E nesse
meio tempo, se te agradas, ainda podemos trocar mais um dedinho de prosa...
E saíram os dois pela alameda, Jesus com as mãos para trás,
o pontífice a gesticular, alucinado.
* * *
_ Faremos grandes coisas, eu e Tu, Altíssimo! – insistia o
padre. _ Foi-se o tempo da manjedoura, da carpintaria, dos miseráveis.
Estaremos juntos nos jornais e revistas, assim como nos especiais de fim de ano
da Globo. Oh, Santíssimo... Com o senhor à frente, é claro, pois meu bordão
nesta e na vida anterior é um só: tudo o que peço ao Senhor são dez coisas:
humildade, humildade, humildade, humildade, humildade... (enumerando nos
dedos).
_ Já entendi, filho. Podeis parar por aí.
_ Se quiseres, podemos ensaiar agora mesmo a coreografia dos
nossos sermões. Veja só, Elevadíssimo, como me movimento rapidamente. Nem uma
gazela ostentaria tal desenvoltura...
E saiu o pontífice a rodopiar pela alameda, mãos para o
alto, dando Glória a Deus. Teria prosseguido por toda a eternidade se não
notasse que Jesus caminhava cada vez mais rápido e à frente, como que a
evitá-lo. Tomando-O pelas vestes, insistiu, possuído por um vívido entusiasmo:
_ É assim que O louvarão daqui para frente. Não é uma ideia
magnânima? Se a dancinha não Te agrada, podemos contratar Merce Cunningham para
elaborar a coreografia. Ele está morto, claro, mas certamente o encontraremos
por aqui, em algum lugar...
_ Acho que não, filho. – retorquiu Jesus, mais lacônico do
que nunca. – Também tenho um bordão, nesta e em qualquer vida. Foi algo que disse
há muito tempo, em Cafarnaum: “Quando orardes, não sejais como os hipócritas,
que gostam de rezar de pé, nas sinagogas e nos cantos das ruas para serem
vistos pelos homens. Tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta,
reza em segredo a teu Pai; pois Ele, que vê o oculto, recompensar-te-á.”
_ Observação astuta, Mestre! Mas deixou de ser válida nos
tempos atuais. Precisas conhecer o Twitter, o Facebook, o Orkut... Oh,
Santíssimo... Como voltas Tuas costas para este fenômeno da era digital, as
redes sociais? Ah, isto não está direito. Não está, não senhor...
_ É aqui que nos separamos, filho.
* * *
Tão empolgado estava o padre que não reparara no fim da
alameda. Pois eis que a estrada chegara ao fim. E que diante deles, impassíveis
e soltos no ar, estavam apenas dois elevadores Otis – modelos antigos, sim,
porque o Além é ligeiramente mais anacrônico do que a Terra. Jesus fez menção
de entrar no elevador da esquerda, no que foi imitado pelo pontífice. E pela
primeira vez, o Filho do Homem deixou clara sua impaciência. Mandando às favas
a diplomacia, ordenou:
_ Tu segues no outro.
O pontífice bateu na testa, bem-humorado. Parecia ter se
dado conta de algo muito, muito engraçado:
_ Claro, Mestre! Quem sou eu para viajar no mesmo elevador
que o Senhor? Ora: sou um humilde servo... Isto também costumava eu dizer
frequentemente, lá na Terra.
_ Não é isso, Filho. Há espaço suficiente para os dois. Cá
pra nós, nem ligo muito para essas questões de hierarquia, embora Meu Santo Pai
seja mais suscetível a elas. Ocorre apenas que vemos realidades muito distintas
e que não gostarias do Meu mundo – veja, ali ainda somos um pouco
conservadores. Creio mesmo que o senhor se entediaria facilmente. Portanto,
passar bem.
E tomou Jesus o elevador, rumo às alturas divinais.
O padre, por sua vez, ouviu o som de aço a ranger e viu as
pesadas portas do elevador da direita se abrir, como a bocarra de um monstro
fantástico. Um cheiro de enxofre delas se projetou, enquanto o sistema de som
ambiente despejava os primeiros acordes de “Alejandro”, em versão instrumental.
Olhos baixos, resignado à própria sorte e sem conseguir
encarar diretamente o ascensorista (embora sua simples presença fosse o
bastante para arrepiar-lhe os cabelos da nuca), o padre murmurou – e sabia que
aquela não era propriamente uma opção:
_ Desce!
“Quem escuta as Minhas palavras e as põe em prática é como o homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, engrossaram os rios, sopraram os ventos contra aquela casa; mas não caiu, porque estava fundada sobre a rocha. Aquele, porém, que ouve as Minhas palavras e não as põe em prática, é semelhante ao néscio que edificou a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, engrossaram os rios, sopraram os ventos contra aquela casa e ela desmoronou-se; e grande foi a sua ruína.”
(Jesus Cristo, um cara legal).