terça-feira, 23 de abril de 2013

Crônica - "O Primo Ricardo"


O PRIMO RICARDO




Primo Ricardo tem 120 kg e cabelos encaracolados. Hoje, devem estar grisalhos. Mas, quando o conheci, eram negros e lustrosos. Primo Ricardo nunca teve um emprego de verdade – creio, aliás, que esta é sua trade mark. Ele é o proverbial “mau exemplo” que as mães apontam horrorizadas quando querem desencorajar os filhos a “fazer corpo mole” na escola ou nas aulas de Inglês. Porém, esta é uma leitura muito cruel do Primo Ricardo. Que, de fato, nem é meu primo.

O Ricardo em questão é primo em segundo grau de um grande amigo meu. Gostávamos muito dele. E nem poderia ser diferente, pois tínhamos 20, 21 anos e Primo Ricardo era uma dissidência romântica em plena era dos yuppies. Não achávamos nosso lugar no mundo, embora fossemos pressionados a fazê-lo em casa e na faculdade (onde nunca faltavam exemplos de rapazes precoces e “já encaminhados na vida”, que tinham carros, apartamentos e namoravam para casar; enquanto nós...).

Fato é: quando o Primo Ricardo chegava, nossos olhos brilhavam.

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Primo Ricardo era uma daquelas “Missões Apolo 13” – um clássico exemplo de “falha no lançamento”. O que nos fascinava nele não eram os carros importados ou suas garotas incríveis (ele não tinha nem um, nem outro), mas o fato de ter sido testado em todos os rituais de passagem que nos esperavam – trabalho, relacionamentos, filhos – e ter falhado miseravelmente em todos. Por isso o adorávamos!

Inconsequente até a medula, mas cheio de panache, Primo Ricardo era a prova de que existia vida após o fiasco, após decepcionarmos nossos pais e contrairmos matrimônios catastróficos. Sim! Sobrevive-se, mesmo não sendo herdeiro da família Diniz ou, em um exemplo mais construtivo, o Bill Gates.

Ciente da importância que tinha para nós, Primo Ricardo caprichava na performance. Adentrava as festas na casa de meu amigo ruidosamente, sempre com aquele obsceno “cofrinho” aparecendo e com aquelas ainda mais obscenas rodelas de suor nos sovacos da camisa. Ia batendo nas mãos de todos – era um Shaquille O'Neal do ócio criativo. Primo Ricardo era o bom, era o bom, era o bom. O pai levantava as sobrancelhas, descrente (seu olhar parecia dizer: “lá vem cascata e hoje não estou a fim”); mas as irmãs – tão ou mais gordinhas que o Primo Ricardo – o adoravam. E nós também.

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“Vocês falam que a gestão da Luiza Erundina é uma merda, mas é porque não andam na periferia, como eu”, esbravejava o Primo Ricardo, “batendo” uma coxa creme e um copão de Coca-Cola. “Ao menos a criançada de Pirituba está comendo arroz e feijão!”

Esta era a faceta “politizada” do Primo Ricardo. Como qualquer romântico, ele se inclinava para a esquerda mais pela poesia dos discursos que pelo resultado prático de suas políticas. O mais perto que Primo Ricardo chegara da periferia, então, fora naquela vez em que trocara um pneu furado nas imediações de Parelheiros, se cagando de medo e bem tarde da noite. Porque Primo Ricardo – sim, isto é incrível! – era um membro da elite.

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Prova disso é que, nos loucos anos 70, quando adolescente, ele encetou uma precoce (e não continuada, como tudo na vida do Primo Ricardo) carreira de cineasta. O pai, um comerciante de posses, já aposentado, tinha as ferramentas da revolução – uma filmadora Super-8 e um projetor de segunda-mão.

Primo Ricardo produziu seus primeiros curtas-metragens no interior de São Paulo, encenando perseguições radicais com seu Opalão surrado. Na época, ele queria ser Steven Spielberg. Seus filmes nunca estrearam, mas, ao menos, Primo Ricardo aprimorou suas técnicas de “cavalo de pau” e “frenagem brusca na faixa de pedestres”, para terror da população de Campinas e adjacências.

O carro do Primo Ricardo era parte de sua mitologia pessoal. Distinguia-se por um curioso fenômeno: jamais mudava com o passar do tempo. Era quase um monumento histórico tombado. Manchas de gordura se fixavam às janelas como itens de fábrica e uma das portas só abria até a metade. O carro também passava enigmaticamente da primeira para a terceira marcha – só o Primo Ricardo sabia fazê-lo sem extrair do bólido um som horripilante, capaz de estourar os tímpanos de quem viajava nos bancos de trás e do carona.

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Com o tempo – e os sucessivos “ciclos” profissionais do Primo Ricardo –, a “caranga” também se tornou um depósito de mercadorias.

Em 1987, Primo Ricardo começou a vender queijos – as peças eram amontoadas sem cerimônia no banco de trás; assim, o veículo adquiriu, também, um indefectível perfume de Gorgonzola, que casava bem com a porta empenada e com as manchas nos vidros. Já nos idos de 1989, durante uma visita à casa do meu amigo, Primo Ricardo abriu uma valise “007” e nos mostrou qual era o seu ganha-pão naquele momento: fitas pornôs.

Comemoramos entusiasticamente a nova ocupação do Primo Ricardo – mas, para ele, não se tratava apenas de “jogos e diversão”: Primo Ricardo levava a sério tudo o que fazia – enquanto o fazia. No momento, sua ocupação sempre era a mais promissora do Brasil, da Terra, talvez do Universo.

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“O futuro é o queijo, minha gente!”, disse-nos Primo Ricardo, em 87. “É um produto natural, sofisticado, tem procura. Vamos e venhamos: pobres e reis comem queijo.” (usei esta frase em um dos primeiros artigos que publiquei em revistas, em 1992; nunca dei o crédito a Primo Ricardo, mas devo agradecer pela inspiração).

“O futuro é o vídeo pornô, minha gente!”, disse-nos Primo Ricardo, em 89, segurando uma capinha de Entre as Bochechas 2 em uma mão e um folder de O Sexterminador do Futuro na outra. “Minha ex-esposa adorava assistir, a safadinha... Todos os casais gostam. E depois, está aí o videocassete, que chegou pra ficar – é o negócio do futuro.” (Isto foi antes do DVD e da Internet, mas, na época, balançamos a cabeça em êxtase religioso; como se o próprio Nostradamus nos cantasse uns palpites para a Telessena de 2020).

Nossos pais trabalhavam com vendas ou eram funcionários públicos. Mas o Primo Ricardo achara um jeito de ganhar a vida com mulher pelada sem ser preso ou ter que usar uma bata de cafetão. Sensacional!

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“O futuro é o coco verde, minha gente”, disse-nos Primo Ricardo, na última vez em que o vi, em 92 ou 93. Sim – Primo Ricardo acabara de realizar a suprema fantasia dos desbundados: abrira uma barraca de coco verde no litoral. “Você fatura mais nas temporadas, mas dá pra fazer uma manutenção, depois... E o que não falta é procura por coco: é bom, é natural, é refrescante e é barato. Pô! Quem não gosta de coco, minha gente?”

A barraca foi para o saco no mesmo ano. E sua última ocupação infame superou qualquer expectativa: Primo Ricardo foi trabalhar como segurança de puteiro em Mongaguá (litoral de São Paulo). Ao menos, foi o que ouvi dizer. Àquelas alturas, lamentei por ele. Sabia, então, que muitas de suas bravatas eram, bem... apenas bravatas. No fundo, Primo Ricardo talvez lamentasse ter feito tantas escolhas erradas, ter brincado com o tempo e com as responsabilidades como um Aprendiz de Feiticeiro. No fundo, talvez se desesperasse por isso.

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Mas Primo Ricardo nos ensinou uma coisa importante – além, é claro, que “reis e mendigos comem queijo” (sempre lhe serei grato por este espetacular “olho” de matéria): “Se tudo falhar, falhe com estilo.”

Eu vou além: quando os modelos de sucesso se tornam tão inflexíveis, como hoje, pessoas como o Primo Ricardo equilibram o jogo em favor do bom-senso.

Uma coisa eu lhe digo: nem todos podem ser o Bill Gates – mas um número igualmente reduzido de pessoas consegue ser o Primo Ricardo.

Acho que a verdade absoluta está em algum lugar entre eles dois.