POR ALGUNS DÓLARES A MAIS...
Se a vida é um filme, como dizem os sonhadores, a máxima para os tempos que correm é uma só: ninguém mais quer ser figurante.
O importante é se destacar – mesmo que, paradoxalmente, “se
destacar” implique em abdicar de sua personalidade. Pouco importa se você tem
pudores e um código moral anacrônico: mais vale se expor e bancar o idiota em
atrações de gosto duvidoso, como o Big Brother Brasil e o SuperPop, do que ser
um otário anônimo.
Mais vale, também, gastar o que você tem (e o que não tem)
em um ingresso do Cirque du Soleil (mesmo que você deteste trapézios e tenha
trauma de palhaços) e poder dizer a todos do escritório que assistiu ao
espetáculo do que investir seu rico dinheirinho em qualquer outra coisa que,
individualmente, lhe daria mais prazer: uma pescaria, uma garrafa de pinga, um
livro – sei lá.
Todos os mandamentos anteriores foram suplantados por um
novo (e não me refiro ao batido “amai teu próximo como a ti mesmo”; esse aí
também dançou): “o importante é ser prime.”
* * *
Prime é não pegar fila. Prime é ter sossego. Prime é ter
assegurados todos aqueles direitos de que você sempre ouviu falar e que
deveriam ser seus de graça – mas que, na prática, não são. É preciso pagar mais
para ser tratado como gente, amigo. A vida se tornou uma questão da FUVEST com
duas alternativas (e quem investir um pouco mais poderá assinalar a resposta
correta): atendimento em pronto-socorro do SUS ou uma semana de relaxamento no
spa Sete Voltas?
(...)
Quer dois minutos pra pensar na questão, grande?
* * *
No último sábado, fui prime. E no cinema, o que é ainda
melhor.
Por cortesia de um amigão de infância, Rogério Berni (que
conseguiu os ingressos e que ainda me deu carona à cena do crime), fui conhecer
o chiquérrimo cinema VIP do Shopping Cidade Jardim.
Até então, em meu parco conhecimento, o Shopping Iguatemi
era o “shopping dos ricos” de São Paulo. Não é mais: shopping de rico, agora, é
o Cidade Jardim – que, inclusive, fica em um daqueles bolsões arborizados da
zona sul. Ali, pobre não chega – só se cair do ônibus ou se for colhido por uma
tromba d’água. Ou se ganhar ingresso VIP e uma caroninha, como eu ganhei.
Acho, inclusive, que essa foi a intenção dos criadores do empreendimento quando escolheram sua localização: isolar o Shopping Cidade Jardim da gentalha, gentalha, gentalha.
Acho, inclusive, que essa foi a intenção dos criadores do empreendimento quando escolheram sua localização: isolar o Shopping Cidade Jardim da gentalha, gentalha, gentalha.
* * *
Há outros mecanismos “anti-pobres” no Shopping Cidade
Jardim, além da distância. Por exemplo: não há praça de alimentação. Isso evita
que a muvuca se forme e que os maloqueiros de plantão se abasteçam de
canudinhos e torrem a paciência do cinéfilo amigo com aqueles assobios
estridentes de quarta série.
Outra coisa que o Shopping Cidade Jardim não tem é o bom e
velho “balcão de informações”. Ô, coisa de pobre – “balcão de informações”!
Neste shopping a gente descobre onde é o banheiro (ou onde se valida o tíquete
do estacionamento) no Concierge.
Que, na verdade, é um balcão de informações.
Só que é prime...
* * *
O cinema VIP fica no topo do shopping. É um tipo de “Jardim Suspenso
da Babilônia”, mas cheio de gente falando no celular.
Na bomboniére, um choque: a boa e velha pipoca, combustível
obrigatório de qualquer cineminha, vem com cobertura e sabor de alecrim, alho
ou trufa. Nem pense em fazer o que eu fiz: pagar, pegar a pipoca e sair
andando. Isso denunciará suas origens plebeias.
Além do mais, isso não é necessário: basta fornecer o número
da poltrona que eles levam o rango até você. Um casal ao nosso lado pediu
champanhe – e levei um puta susto ao ver, de trás dos meus potentes óculos 3D,
um atendente do cinema se materializar na minha frente com uma bandeja de prata
na mão, como se fosse um daqueles GIFs animados do CQC.
Pedir champanhe no cinema é um pouco demais, sim...
Mas é prime!
* * *
De minha parte, o melhor de ser prime – além, é claro, de
não ter que aguentar os farofeiros, coisa que realmente me dá no saco – foi a
poltrona.
Ela se transforma em uma chaise longue – é como se você
estivesse assistindo TV na sala de casa. É possível esticar egoistamente as
pernas sem medo de quebrar a rótula de um lanterninha ou fraturar o crânio de
outro espectador, já que os corredores entre as poltronas são vastíssimos. Bem
legal.
* * *
O filme a que assisti – O Besouro Verde – foi a cereja do
bolo em minha noite prime. Estou de saco cheio de filmes de super-heróis. Acho
que todos os filmes de super-heróis são iguais. E se você quiser saber, embora
seja uma informação inútil, nunca gostei de super-heróis.
Assim, O Besouro Verde foi o melhor filme do gênero a que eu
poderia ter assistido no sábado passado. Afinal, é uma comédia escrachada que
reduz a pó de traque todas as convenções dos filmes de super-heróis.
O mocinho é um bobalhão (ainda que seja muito engraçado;
lembra aquele comediante, Will Ferrell, mas sem ser irritante como ele),
enquanto o motorista, Kato (expert em Artes Marciais e em mecânica), é o
verdadeiro herói do filme. Mais que um remake, é uma reflexão divertida sobre a
clássica série de TV homônima (que, em minha infância, costumava passar junto
com Batman e Robin).
O roteiro tem um viés revisionista: o fato de Kato ser o
principal protagonista parece um “calaboca” retroativo nos produtores da série
original – que, nos anos 60, reduziram um ícone como Bruce Lee (intérprete do
Kato original) à condição de coadjuvante, só porque ele era oriental. É o tipo
de comentário subliminar e elegante que raramente vemos em filmes de
super-heróis “autênticos” (eles se levam cada vez mais a sério e,
consequentemente, são cada vez mais ridículos; vide o novo Thor, dirigido por
Kenneth Branagh e coestrelado por Anthony Hopkins...).
* * *
Agradeço ao meu amigo, Rogério, que realizou um de meus
grandes desejos: provar-me que ainda é possível ir ao cinema e se divertir,
vivenciando uma experiência coletiva em que dezenas de pessoas trancadas em uma
sala queiram assistir ao mesmo filme – e não ficar disparando torpedos pelo
celular, conversando em voz alta, derrubando pipoca e refrigerante uns nos
outros ou, em casos extremos, atirando excrementos nos ocupantes das poltronas
de trás.
Gente burra é uma merda, mesmo – não tem nada que ir a esses
lugares: cinemas, museus, teatros. Estarão muito mais felizes no Forró, no
Baile Funk ou nos barzinhos e danceterias de Campos do Jordão. Com a separação,
todos saem ganhando.
Por exemplo: houve um único momento tenso no cinema prime.
Foi quando a indefectível musiquinha da Motorola (“Hello, Motto!”) se sobrepôs
aos diálogos do filme. É que um jeca usando black-tie esquecera-se de desligar
o celular quando a sessão começou.
O que me leva a outro de meus grandes desejos – este,
infelizmente, ainda não atendido.
O de que, um dia, todos os ricos sejam prime...