AMOR DE CARNAVAL
Os amores de Carnaval já foram cantados em prosa e em verso – são intensos, dizem, mas não “sobem a serra”. Em minha ignorância, não sei se a expressão é empregada em outros lugares, além de São Paulo, capital – aqui, muita gente realmente “desce a serra” para brincar o Carnaval, já que o litoral é um destino comum de quem se dispõe a curtir a Folia. Mas o importante é que qualquer brasileiro conhece a expressão “Amor de Carnaval”. E é sobre um “Amor de Carnaval” que o mantenedor deste blog gostaria de falar esta semana.
* * *
Tudo começou no domingo de Carnaval.
Fazia frio e garoava. Ao embicar o carro na rua de minha
mãe, com a determinação de passar uma noite na casa onde cresci (curtindo a
nostalgia do meu velho quarto, assim como minha família, antes de regressar ao
meu pequeno e solitário apartamento na segunda-feira), eu o vi: alto, moreno,
de olhos curiosos e espírito altivo. Acho que foi amor à primeira vista.
Não, não era outro homem, desculpe-me frustrar suas
expectativas, leitor sem-vergonha ou hiper-imaginativo. Era apenas o Charles.
Charles, um sheepdog vira-lata.
* * *
Se fosse um cachorro grande e vadio, mal-encarado e cheio de
atitude (há vários deles soltos nas ruas da Zona Norte de São Paulo), não teria
feito mais do que lançar um olhar de curiosidade sobre o animal. Mas não era o
caso. O felpudo e maltrapilho recém-chegado, apesar do porte médio, tinha o
indefectível olhar dos filhotes: inquisidor, mas inocente; próprio dos bichos
que ainda não tomaram contato com a maldade e a indiferença humanas. Como
qualquer bebê-cachorro, me parecia um “crente” – um “crente” na ideia
equivocada de que os humanos são os melhores amigos dos cães, rá!, que bela
mistificação.
“Charles” – não sei se era este seu nome; foi o que me
disseram algumas crianças da rua, dias depois, quando eu tentava levantar o
paradeiro do cachorro perdido – sabia como angariar fãs. Quando fechei o portão
da garagem, ele apoiou o queixo nas grades e me encarou com pupilas tristes,
profundas, que emergiam parcamente de um emaranhado de pelos encardidos. Queria
um afago e fiz jus às suas expectativas – mas, com frio e com sono (e
confortado por aquela consciência pacificadora que diz: “não é problema meu,
não tenho nada a ver com isso”), entrei em casa e esqueci o sheepdog vira-lata
até o dia seguinte, quando, esperava, ele já estaria abanando o rabo em outras
bandas.
Ledo engano!
* * *
Charles continuou ali por vários dias – até ontem à noite,
para ser mais preciso. E enquanto morou na caixa de papelão colocada entre o
muro de minha mãe e o de uma vizinha solidária, tornou-se a sensação da Rua
Angola, CEP 02479-010 – Lauzane Paulista.
A.C (Antes do Charles), o relacionamento com a vizinha em
questão nunca passara de um "bom dia" ou "boa noite"
casual. D.C. (Depois do Charles), ela se tornou minha melhor amiga na
vizinhança. Foi ela que me ajudou a alimentá-lo regularmente – duas refeições
por dia, além de quatro Biscroks e um bifinho; e a passar Frontline na nuca do
bicho, aliviando-o do tormento das pulgas e dos carrapatos.
E Charles tinha legiões de pulgas: todas as noites, após
brincar com ele e alimentá-lo, eu entrava na casa de minha mãe pelo quintal
(mudei-me provisoriamente para lá, até o drama de Charles chegar a uma
conclusão), tirava as roupas no lavabo dos fundos e entrava na casa pela
cozinha, de cuecas. Era o único jeito de não empestear a propriedade com os
parasitas que habitavam a pelagem de nosso hóspede não-oficial.
E o diabo é que, enquanto cuidávamos de Charles, esse conquistador
barato lambia nossa mão, oferecia a barriga para uma coçada e saltava como um
doido sobre nós. Inicialmente, achei que Charles estivesse a fim da minha perna
– sabe o que dizem: cães são atraídos por pernas da mesma forma que sou atraído
pela Ana Hickmann ou pela Christiane Pelajo. Mas logo percebi que não era nada
disso: Charles queria mesmo era abraçar todo mundo – todo dia, toda hora.
* * *
Aí começou meu drama: decidi adotar Charles. Sou livre,
desimpedido, moro só... Por que não?
Ora, eu lhe digo por quê: diferentemente das pessoas, cães
não querem apenas coisas essenciais, como um apartamento, comida e banhos
regulares. Cães querem atenção e cuidados. Todo mundo – da minha mãe ao meu
irmão, passando pela veterinária do nosso lhasa apso de estimação, Yan (ainda o
grande amor da minha vida, apesar da paixão pungente e passageira por Charles)
me desmotivaram a fazê-lo.
Apesar de todos os argumentos racionais, eu – que nunca me
pautei 100% pela lógica (veja, eu era um desastre em Matemática) – só pensava
que Charles, se continuasse na rua, logo seria envenenado pela vizinhança; ou
cairia nas garras da Prefeitura, assim que uma denúncia anônima fosse feita por
qualquer cidadão que por ali passasse e que se sentisse ameaçado pelo sheepdog
dócil, mas doidão, que andava aprontando na Rua Angola, números 95/103
(lembre-se: ele habitava o limite entre dois muros).
Afinal: ao ver-se cercado de atenção por alguns de nós,
Charles começou a se achar o “dono do pedaço”. Inclusive, avançou em um incauto
lixeiro que tentava fazer seu trabalho na rua, no primeiro dia útil após o
Carnaval (Charles pensou que confiscariam sua casa de papelão, o que, para ele,
era o “Taj Mahal”). Só sei que o tempo passava, minha afeição por Charles
crescia e, impotente, eu não conseguia estruturar nenhum plano brilhante para
salvá-lo da injeção letal.
* * *
Trabalhei “no automático” nos últimos dias – apurava,
escrevia e participava de reuniões como um zumbi, usando apenas aquela parcela
do cérebro reservada às coisas práticas. No mais, minha mente trabalhava
furiosamente para solucionar o problema de Charles – que, a rigor, nem sabia
que tinha um problema (a inconsciência dos bichos não é mesmo uma benção?).
Conversei com administradores de abrigos para cães (e ouvi coisas
escabrosas, que fazem a humanidade descer dois ou três degraus em qualquer
escala moral do reino animal – o leitor sabia que muitos cães adotados voltam
aos abrigos espancados, mutilados e até violentados por seus donos? Show de
bola); inquiria adestradores; apelava às senhorinhas do bairro onde trabalho, o
Ipiranga, em busca de soluções para o meu dilema. Os colegas de redação também
se movimentaram, agitando contatos em ONGs e até na Prefeitura – tudo sem
sucesso.
* * *
Finalmente, estruturei um plano de ação: internaria Charles
em um hotelzinho para cachorros, bancaria sua estadia pelo tempo que fosse
preciso e, nesse meio tempo, procuraria adestrá-lo, de modo a (algum dia)
tentar levá-lo para meu apartamento. Não havia “plano B” – se não desse certo,
se ele não se adaptasse ao confinamento da propriedade e às longas manhãs e
tardes sozinho, eu teria que devolvê-lo à rua; mas, por cruel que pareça este
raciocínio, a lógica pura estava ao meu lado: melhor isso do que nada. Cães não
têm dramas de consciência, não se lamentam quando as circunstâncias os levam a
morar na sarjeta, mesmo após terem vivido como reis.
Tomada a resolução, consegui implementá-la em dois dias:
ontem, antes de voltar à casa de minha mãe, “matriculei” Charles em uma clínica
para cães da Casa Verde. Um lugar incrível – fiquei genuinamente emocionado ao
constatar que ele existia. Após tantas negativas e argumentos “realistas”, o
Céu dos cachorros sem lar estava ali, à minha frente: um casarão muito
simpático, nas proximidades do Terminal Casa Verde, gerenciado pela amável Dona
Isabel. Eu achara um lugar para Charles, bem melhor que a caixa de papelão onde
ele vivera nos últimos dias.
Tudo estava acertado: hoje, por volta das 08h30, uma
tratadora viria buscá-lo – e escoltado por mim, Charles se mudaria para a “Ilha
de Caras” dos cachorros, onde teria um vidão reservado a poucos quadrúpedes em
sua situação.
* * *
Com o coração leve, regressei à casa de minha mãe. Não via a
hora de embicar o carro na rua e dar a notícia a Charles... É claro que ele não
entenderia nada, mas saltaria em meu colo assim que eu começasse a gesticular,
animado – cachorros não entendem palavras, mas entendem o que se esconde por
trás das palavras. Seria apenas questão de um mês – talvez dois – e eu teria
que desembolsar R$ 1.200,00. Mas, depois – devidamente adestrado pela equipe de
Dona Isabel –, Charles se mudaria comigo para meu apartamento na Freguesia do
Ó. E aí (permita-me o uso do clichê), seríamos felizes para sempre.
Mas quando cheguei à rua, não havia sinal de Charles. Ou de
sua caixa de papelão.
Gelei. Enfim, acontecera: a Prefeitura viera buscá-lo
durante o dia, enquanto eu negociava o futuro de Charles com segundos e
terceiros. Saltei do carro e entrei em casa batendo as portas. Após ouvir o
inevitável, eu teria que localizar Charles e resgatá-lo. E rápido: ouvi dizer
que esperam cinco dias antes de sacrificar um animal – tempo, este, em que o
suposto proprietário (ou qualquer interessado) poderá reclamá-lo de volta. Mas
e se não fosse assim? E se a execução de Charles estivesse marcada para amanhã
(hoje) cedo – justamente, quando ele deveria gozar sua redenção?
* * *
Felizmente, não era nada disso.
Era algo MUITO MELHOR.
Charles foi adotado. Às 18h30 de ontem, por um sujeito muito
digno, que veio buscá-lo trazendo, a tiracolo, uma cadelinha. Não vi acontecer
– naquela hora, acertava com Dona Isabel a hospedagem do sheepdog vira-lata na
clínica da Casa Verde. Mas aquela vizinha solidária me deu todos os detalhes:
Charles partiu com a mesma alegria com que chegou – encantado com seu novo dono
e (óbvio!) com a cachorrinha com quem dividirá o quintal. Nem se deu ao
trabalho de olhar para trás, mas quem pode culpá-lo? Em seu lugar, eu faria o
mesmo.
A rua de minha mãe está novamente silenciosa, sem Charles
pulando de lá para cá – ou fazendo a gente rir com aqueles momentos impagáveis
que só os vira-latas sabem proporcionar. Foi memorável, por exemplo, o dia em
que Charles convidou outro cachorro vagabundo para conhecer suas maison – a caixa
de papelão – e, depois, se arrependeu desse ato solidário: o outro vira-lata,
mais malandro do que ele, comeu toda a sua ração e se mandou. Charles “causou”
enquanto esteve ali e, por isso, deixou saudades.
A essas alturas, já está bem tosado e cuidado. E nem se
chama mais “Charles” – soube, pela veterinária que o salvou (ao colocar um
cartaz com a foto do cão na pet-shop do quarteirão, anúncio, este, visto pelo
sujeito que o adotou), Dra. Edileuda Rodrigues, que ele foi rebatizado de
“Duke” (acredite ou não, era o nome que eu ia lhe dar, se ele fosse morar
comigo...). O importante é que está sob os cuidados de um homem de bem. Que
Charles (ou Duke, vá lá!) tenha uma longa e feliz vida canina.
Sem aquele pulguento por perto, já posso voltar ao meu pequeno
e solitário apartamento na Freguesia do Ó. Que, agora, me parece bem maior – e
um pouco mais solitário...
P.S. 1: lá em casa, cada um agiu a seu modo para resolver o problema do cachorro perdido. Minha mãe e meu irmão rezaram – eu preferi tomar uma atitude. Nesse caso, São Francisco de Assis ajudou. Mas, por via das dúvidas, é bom não contar “apenas” com a turma lá de cima... Um “viva” para o pensamento positivo, dois “vivas” para a AÇÃO positiva. Se não der para pagar um hotel ao cachorro abandonado que “bateu” à sua porta, um cantinho na garagem (para protegê-lo da chuva e de outros representantes de nossa indigna espécie) já será o bastante para que São Francisco de Assis lhe pague uma "breja" no Dia do Juízo Final.
P.S. 2: Deixo o leitor com algumas imagens de Charles. A última, já com seu visual "2011", pós-adoção. Lá se vai um grande camarada, apesar das pulgas e do jeitão desleixado. That’s it, “bicho”!