quarta-feira, 24 de abril de 2013

Crônica - Cães



AMOR DE CARNAVAL




Os amores de Carnaval já foram cantados em prosa e em verso – são intensos, dizem, mas não “sobem a serra”. Em minha ignorância, não sei se a expressão é empregada em outros lugares, além de São Paulo, capital – aqui, muita gente realmente “desce a serra” para brincar o Carnaval, já que o litoral é um destino comum de quem se dispõe a curtir a Folia. Mas o importante é que qualquer brasileiro conhece a expressão “Amor de Carnaval”. E é sobre um “Amor de Carnaval” que o mantenedor deste blog gostaria de falar esta semana.


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Tudo começou no domingo de Carnaval.

Fazia frio e garoava. Ao embicar o carro na rua de minha mãe, com a determinação de passar uma noite na casa onde cresci (curtindo a nostalgia do meu velho quarto, assim como minha família, antes de regressar ao meu pequeno e solitário apartamento na segunda-feira), eu o vi: alto, moreno, de olhos curiosos e espírito altivo. Acho que foi amor à primeira vista.

Não, não era outro homem, desculpe-me frustrar suas expectativas, leitor sem-vergonha ou hiper-imaginativo. Era apenas o Charles.

Charles, um sheepdog vira-lata.

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Se fosse um cachorro grande e vadio, mal-encarado e cheio de atitude (há vários deles soltos nas ruas da Zona Norte de São Paulo), não teria feito mais do que lançar um olhar de curiosidade sobre o animal. Mas não era o caso. O felpudo e maltrapilho recém-chegado, apesar do porte médio, tinha o indefectível olhar dos filhotes: inquisidor, mas inocente; próprio dos bichos que ainda não tomaram contato com a maldade e a indiferença humanas. Como qualquer bebê-cachorro, me parecia um “crente” – um “crente” na ideia equivocada de que os humanos são os melhores amigos dos cães, rá!, que bela mistificação.

“Charles” – não sei se era este seu nome; foi o que me disseram algumas crianças da rua, dias depois, quando eu tentava levantar o paradeiro do cachorro perdido – sabia como angariar fãs. Quando fechei o portão da garagem, ele apoiou o queixo nas grades e me encarou com pupilas tristes, profundas, que emergiam parcamente de um emaranhado de pelos encardidos. Queria um afago e fiz jus às suas expectativas – mas, com frio e com sono (e confortado por aquela consciência pacificadora que diz: “não é problema meu, não tenho nada a ver com isso”), entrei em casa e esqueci o sheepdog vira-lata até o dia seguinte, quando, esperava, ele já estaria abanando o rabo em outras bandas.

Ledo engano!

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Charles continuou ali por vários dias – até ontem à noite, para ser mais preciso. E enquanto morou na caixa de papelão colocada entre o muro de minha mãe e o de uma vizinha solidária, tornou-se a sensação da Rua Angola, CEP 02479-010 – Lauzane Paulista.

A.C (Antes do Charles), o relacionamento com a vizinha em questão nunca passara de um "bom dia" ou "boa noite" casual. D.C. (Depois do Charles), ela se tornou minha melhor amiga na vizinhança. Foi ela que me ajudou a alimentá-lo regularmente – duas refeições por dia, além de quatro Biscroks e um bifinho; e a passar Frontline na nuca do bicho, aliviando-o do tormento das pulgas e dos carrapatos.

E Charles tinha legiões de pulgas: todas as noites, após brincar com ele e alimentá-lo, eu entrava na casa de minha mãe pelo quintal (mudei-me provisoriamente para lá, até o drama de Charles chegar a uma conclusão), tirava as roupas no lavabo dos fundos e entrava na casa pela cozinha, de cuecas. Era o único jeito de não empestear a propriedade com os parasitas que habitavam a pelagem de nosso hóspede não-oficial.

E o diabo é que, enquanto cuidávamos de Charles, esse conquistador barato lambia nossa mão, oferecia a barriga para uma coçada e saltava como um doido sobre nós. Inicialmente, achei que Charles estivesse a fim da minha perna – sabe o que dizem: cães são atraídos por pernas da mesma forma que sou atraído pela Ana Hickmann ou pela Christiane Pelajo. Mas logo percebi que não era nada disso: Charles queria mesmo era abraçar todo mundo – todo dia, toda hora. 

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Aí começou meu drama: decidi adotar Charles. Sou livre, desimpedido, moro só... Por que não?

Ora, eu lhe digo por quê: diferentemente das pessoas, cães não querem apenas coisas essenciais, como um apartamento, comida e banhos regulares. Cães querem atenção e cuidados. Todo mundo – da minha mãe ao meu irmão, passando pela veterinária do nosso lhasa apso de estimação, Yan (ainda o grande amor da minha vida, apesar da paixão pungente e passageira por Charles) me desmotivaram a fazê-lo.

Apesar de todos os argumentos racionais, eu – que nunca me pautei 100% pela lógica (veja, eu era um desastre em Matemática) – só pensava que Charles, se continuasse na rua, logo seria envenenado pela vizinhança; ou cairia nas garras da Prefeitura, assim que uma denúncia anônima fosse feita por qualquer cidadão que por ali passasse e que se sentisse ameaçado pelo sheepdog dócil, mas doidão, que andava aprontando na Rua Angola, números 95/103 (lembre-se: ele habitava o limite entre dois muros).

Afinal: ao ver-se cercado de atenção por alguns de nós, Charles começou a se achar o “dono do pedaço”. Inclusive, avançou em um incauto lixeiro que tentava fazer seu trabalho na rua, no primeiro dia útil após o Carnaval (Charles pensou que confiscariam sua casa de papelão, o que, para ele, era o “Taj Mahal”). Só sei que o tempo passava, minha afeição por Charles crescia e, impotente, eu não conseguia estruturar nenhum plano brilhante para salvá-lo da injeção letal.

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Trabalhei “no automático” nos últimos dias – apurava, escrevia e participava de reuniões como um zumbi, usando apenas aquela parcela do cérebro reservada às coisas práticas. No mais, minha mente trabalhava furiosamente para solucionar o problema de Charles – que, a rigor, nem sabia que tinha um problema (a inconsciência dos bichos não é mesmo uma benção?).

Conversei com administradores de abrigos para cães (e ouvi coisas escabrosas, que fazem a humanidade descer dois ou três degraus em qualquer escala moral do reino animal – o leitor sabia que muitos cães adotados voltam aos abrigos espancados, mutilados e até violentados por seus donos? Show de bola); inquiria adestradores; apelava às senhorinhas do bairro onde trabalho, o Ipiranga, em busca de soluções para o meu dilema. Os colegas de redação também se movimentaram, agitando contatos em ONGs e até na Prefeitura – tudo sem sucesso.

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Finalmente, estruturei um plano de ação: internaria Charles em um hotelzinho para cachorros, bancaria sua estadia pelo tempo que fosse preciso e, nesse meio tempo, procuraria adestrá-lo, de modo a (algum dia) tentar levá-lo para meu apartamento. Não havia “plano B” – se não desse certo, se ele não se adaptasse ao confinamento da propriedade e às longas manhãs e tardes sozinho, eu teria que devolvê-lo à rua; mas, por cruel que pareça este raciocínio, a lógica pura estava ao meu lado: melhor isso do que nada. Cães não têm dramas de consciência, não se lamentam quando as circunstâncias os levam a morar na sarjeta, mesmo após terem vivido como reis.

Tomada a resolução, consegui implementá-la em dois dias: ontem, antes de voltar à casa de minha mãe, “matriculei” Charles em uma clínica para cães da Casa Verde. Um lugar incrível – fiquei genuinamente emocionado ao constatar que ele existia. Após tantas negativas e argumentos “realistas”, o Céu dos cachorros sem lar estava ali, à minha frente: um casarão muito simpático, nas proximidades do Terminal Casa Verde, gerenciado pela amável Dona Isabel. Eu achara um lugar para Charles, bem melhor que a caixa de papelão onde ele vivera nos últimos dias.

Tudo estava acertado: hoje, por volta das 08h30, uma tratadora viria buscá-lo – e escoltado por mim, Charles se mudaria para a “Ilha de Caras” dos cachorros, onde teria um vidão reservado a poucos quadrúpedes em sua situação.

* * *

Com o coração leve, regressei à casa de minha mãe. Não via a hora de embicar o carro na rua e dar a notícia a Charles... É claro que ele não entenderia nada, mas saltaria em meu colo assim que eu começasse a gesticular, animado – cachorros não entendem palavras, mas entendem o que se esconde por trás das palavras. Seria apenas questão de um mês – talvez dois – e eu teria que desembolsar R$ 1.200,00. Mas, depois – devidamente adestrado pela equipe de Dona Isabel –, Charles se mudaria comigo para meu apartamento na Freguesia do Ó. E aí (permita-me o uso do clichê), seríamos felizes para sempre.

Mas quando cheguei à rua, não havia sinal de Charles. Ou de sua caixa de papelão.

Gelei. Enfim, acontecera: a Prefeitura viera buscá-lo durante o dia, enquanto eu negociava o futuro de Charles com segundos e terceiros. Saltei do carro e entrei em casa batendo as portas. Após ouvir o inevitável, eu teria que localizar Charles e resgatá-lo. E rápido: ouvi dizer que esperam cinco dias antes de sacrificar um animal – tempo, este, em que o suposto proprietário (ou qualquer interessado) poderá reclamá-lo de volta. Mas e se não fosse assim? E se a execução de Charles estivesse marcada para amanhã (hoje) cedo – justamente, quando ele deveria gozar sua redenção?

* * *

Felizmente, não era nada disso.

Era algo MUITO MELHOR.

Charles foi adotado. Às 18h30 de ontem, por um sujeito muito digno, que veio buscá-lo trazendo, a tiracolo, uma cadelinha. Não vi acontecer – naquela hora, acertava com Dona Isabel a hospedagem do sheepdog vira-lata na clínica da Casa Verde. Mas aquela vizinha solidária me deu todos os detalhes: Charles partiu com a mesma alegria com que chegou – encantado com seu novo dono e (óbvio!) com a cachorrinha com quem dividirá o quintal. Nem se deu ao trabalho de olhar para trás, mas quem pode culpá-lo? Em seu lugar, eu faria o mesmo.

A rua de minha mãe está novamente silenciosa, sem Charles pulando de lá para cá – ou fazendo a gente rir com aqueles momentos impagáveis que só os vira-latas sabem proporcionar. Foi memorável, por exemplo, o dia em que Charles convidou outro cachorro vagabundo para conhecer suas maison – a caixa de papelão – e, depois, se arrependeu desse ato solidário: o outro vira-lata, mais malandro do que ele, comeu toda a sua ração e se mandou. Charles “causou” enquanto esteve ali e, por isso, deixou saudades.

A essas alturas, já está bem tosado e cuidado. E nem se chama mais “Charles” – soube, pela veterinária que o salvou (ao colocar um cartaz com a foto do cão na pet-shop do quarteirão, anúncio, este, visto pelo sujeito que o adotou), Dra. Edileuda Rodrigues, que ele foi rebatizado de “Duke” (acredite ou não, era o nome que eu ia lhe dar, se ele fosse morar comigo...). O importante é que está sob os cuidados de um homem de bem. Que Charles (ou Duke, vá lá!) tenha uma longa e feliz vida canina.

Sem aquele pulguento por perto, já posso voltar ao meu pequeno e solitário apartamento na Freguesia do Ó. Que, agora, me parece bem maior – e um pouco mais solitário... 

P.S. 1: lá em casa, cada um agiu a seu modo para resolver o problema do cachorro perdido. Minha mãe e meu irmão rezaram – eu preferi tomar uma atitude. Nesse caso, São Francisco de Assis ajudou. Mas, por via das dúvidas, é bom não contar “apenas” com a turma lá de cima... Um “viva” para o pensamento positivo, dois “vivas” para a AÇÃO positiva. Se não der para pagar um hotel ao cachorro abandonado que “bateu” à sua porta, um cantinho na garagem (para protegê-lo da chuva e de outros representantes de nossa indigna espécie) já será o bastante para que São Francisco de Assis lhe pague uma "breja" no Dia do Juízo Final. 

P.S. 2: Deixo o leitor com algumas imagens de Charles. A última, já com seu visual "2011", pós-adoção. Lá se vai um grande camarada, apesar das pulgas e do jeitão desleixado. That’s it, “bicho”!