ELA É O DIABO!
Declarei guerra à Avenida 23 de Maio.
Se o Bin Laden (que Deus o tenha, embora eu ache difícil)
declarou guerra ao american way of life e o Capitão Ahab (de “Moby Dick”, o
clássico de Herman Melville) declarou guerra a uma baleia cachalote, também
posso ter uma guerra irracional contra um inimigo intangível qualquer. E eu
quero-porque-quero declarar guerra à Avenida 23 de Maio!
Não me olhe torto, não me culpe: foi ela que começou!
* * *
Esta cobra peçonhenta que se arrasta do centro de São Paulo
ao Aeroporto de Congonhas fez por merecer a má-fama. Desde o ano em que surgiu
– 1967. Na época, já se criticava suas curvas mal-projetadas e o pavimento
traiçoeiro. Prenúncio de que era solo amaldiçoado, destinado a trazer grandes
dissabores à boa gente desta cidade...
Meu falecido pai dizia que nem sempre foi assim – apesar do
que proclamam os registros históricos. Segundo o meu velho, houve tempo em que
era uma delícia rodar por aquelas grandes pistas. Decididamente, sou de outra
época: a 23 de Maio está em meus pesadelos desde que tirei a carteira de
habilitação. Nela vivi momentos de horror e angústia.
Se a Avenida 23 de Maio fosse uma mulher, seria uma
emergente meio-brega, meio chique, imprevisível e temperamental. Bem diferente
da Avenida Paulista – uma dama de idade avançada, com tom de voz aveludado,
capaz de manter a elegância até em situações extremas de estresse; ou da
Avenida São João – uma puta velha e boa-praça, daquelas que fumam e bebem com a
gente e que nos entretém com divertidas histórias de alcova.
* * *
Fato é: tirei a 23 de Maio da minha vida. Parafraseando a
Fafá de Belém: “te tirei do meu corpo, te tirei das entranhas, fiz um tipo de
aborto!”
E até que demorou.
Nos idos de 1994, quase fui abalroado por um fusca bordô que
transitava em alta velocidade na contramão da avenida, às 04h00 da manhã; e
quando pensei que o pesadelo acabara, joguei habilmente com a direção e invadi
a terceira pista – pois, no rastro do fusca bordô, seguia uma viatura policial,
perfazendo a mesma rota surreal (creio que estava na captura do fusca). Aquilo
era um sinal... E demorei a tomar uma atitude, embora, hoje, minha decisão seja
irrevogável...
* * *
Morador da zona norte da cidade desde sempre – e com um
histórico de empregos e namoros na região centro-sul da cidade –, sempre fui
vítima preferencial da 23 de Maio. Ela é o meu satanás, o meu exu de
encruzilhada, o ovo podre em minha marmita.
Só eu sei o que vivi na época em que o Buraco do Jânio (que
não se perca pelo nome!) estava sendo implementado. Levava uma hora e quarenta
minutos para chegar à casa de minha então namorada, no aprazível bairro do
Planalto Paulista. Saía de casa embalado por doces suspiros de amor – mas, ao
longo do caminho, era submetido à pressão dos congestionamentos e à
bestialidade dos demais motoristas e chegava ao destino transtornado, punhos
crispados sobre o volante, olhos vermelhos, instintos assassinos aflorados.
Minha própria namorada não me reconhecia.
A 23 de Maio tinha, sobre mim, o efeito daquela poção que
transformava o Dr. Jeckyll no Sr. Hyde.
Era um inequívoco caso de “o motorista e o monstro”.
* * *
A proverbial “gota d’água” se deu em 2005. Eu saía com uma
moça de Moema (zona sul de São Paulo), era uma terça-feira e deixei minha acompanhante
em casa às 02h00 da manhã. Peguei a Bandeirantes e caí na 23 de Maio certo de
que, àquela altura, chegaria em casa em 25 minutos – a tempo de ter uma boa
noite de sono e ir trabalhar em paz no dia seguinte.
Qual não foi minha surpresa quando, na altura do Centro
Cultural Vergueiro (cujos contornos são avistados da infame avenida), o
trânsito se congelou abruptamente – tão abruptamente que quase me espatifei no
carro da frente. Toquei o resto do caminho em primeira-segunda-primeira
marchas, até a Avenida Tiradentes, sem nunca saber o que causara o
congestionamento que ficara para trás...
Pois a 23 de Maio é assim, parceiro: como o Triângulo das
Bermudas, seus horrores estão além da compreensão do Homem.
* * *
Desde então – acredite o leitor ou não – só transitei pela
Avenida 23 de Maio em duas ocasiões. É que desenvolvi habilidades superiores às
de um GPS para traçar rotas alternativas, evitando “a maldita” em prol da
Marginal, do centro velho de São Paulo, da Avenida Brasil ou da Avenida do
Estado. Qualquer caminho é preferível a “ela” – à avenida para o inferno.
Nem sempre, claro, consegue-se enganar o diabo: há dois
meses, fui convidado a participar de um evento em uma livraria paulistana.
Local: Shopping Ibirapuera, zona sul de São Paulo. Achei que, por ser um
sábado, poderia fazer uma trégua com minha velha inimiga. Seria “off-records”,
claro. Ninguém jamais saberia que, contrariando minhas profundas convicções, eu
estava novamente aos beijos com “a maldita”. Como um alcoólatra inconseqüente
que dá o primeiro gole...
Segui bem por toda a Avenida Tiradentes, cruzei o Paissandu
e cheguei a esboçar um sorriso na altura do Viaduto Pedroso.... Mas eis que o
trânsito se congelou abruptamente – tão abruptamente que quase me espatifei no
carro da frente. Toquei o resto do caminho em primeira-segunda-primeira
marchas, até o Shopping Ibirapuera, sem jamais saber o que causara o
congestionamento que ficara para trás.
E, claro, perdi metade do evento...
* * *
Bem dizia minha avó:
“Quem embarca com o diabo precisa navegar com ele.”