quarta-feira, 24 de abril de 2013

Crônica - São Paulo



ELA É O DIABO!




Declarei guerra à Avenida 23 de Maio.

Se o Bin Laden (que Deus o tenha, embora eu ache difícil) declarou guerra ao american way of life e o Capitão Ahab (de “Moby Dick”, o clássico de Herman Melville) declarou guerra a uma baleia cachalote, também posso ter uma guerra irracional contra um inimigo intangível qualquer. E eu quero-porque-quero declarar guerra à Avenida 23 de Maio!

Não me olhe torto, não me culpe: foi ela que começou!

* * *

Esta cobra peçonhenta que se arrasta do centro de São Paulo ao Aeroporto de Congonhas fez por merecer a má-fama. Desde o ano em que surgiu – 1967. Na época, já se criticava suas curvas mal-projetadas e o pavimento traiçoeiro. Prenúncio de que era solo amaldiçoado, destinado a trazer grandes dissabores à boa gente desta cidade...

Meu falecido pai dizia que nem sempre foi assim – apesar do que proclamam os registros históricos. Segundo o meu velho, houve tempo em que era uma delícia rodar por aquelas grandes pistas. Decididamente, sou de outra época: a 23 de Maio está em meus pesadelos desde que tirei a carteira de habilitação. Nela vivi momentos de horror e angústia.

Se a Avenida 23 de Maio fosse uma mulher, seria uma emergente meio-brega, meio chique, imprevisível e temperamental. Bem diferente da Avenida Paulista – uma dama de idade avançada, com tom de voz aveludado, capaz de manter a elegância até em situações extremas de estresse; ou da Avenida São João – uma puta velha e boa-praça, daquelas que fumam e bebem com a gente e que nos entretém com divertidas histórias de alcova.

* * *

Fato é: tirei a 23 de Maio da minha vida. Parafraseando a Fafá de Belém: “te tirei do meu corpo, te tirei das entranhas, fiz um tipo de aborto!”

E até que demorou.

Nos idos de 1994, quase fui abalroado por um fusca bordô que transitava em alta velocidade na contramão da avenida, às 04h00 da manhã; e quando pensei que o pesadelo acabara, joguei habilmente com a direção e invadi a terceira pista – pois, no rastro do fusca bordô, seguia uma viatura policial, perfazendo a mesma rota surreal (creio que estava na captura do fusca). Aquilo era um sinal... E demorei a tomar uma atitude, embora, hoje, minha decisão seja irrevogável...

* * *

Morador da zona norte da cidade desde sempre – e com um histórico de empregos e namoros na região centro-sul da cidade –, sempre fui vítima preferencial da 23 de Maio. Ela é o meu satanás, o meu exu de encruzilhada, o ovo podre em minha marmita.

Só eu sei o que vivi na época em que o Buraco do Jânio (que não se perca pelo nome!) estava sendo implementado. Levava uma hora e quarenta minutos para chegar à casa de minha então namorada, no aprazível bairro do Planalto Paulista. Saía de casa embalado por doces suspiros de amor – mas, ao longo do caminho, era submetido à pressão dos congestionamentos e à bestialidade dos demais motoristas e chegava ao destino transtornado, punhos crispados sobre o volante, olhos vermelhos, instintos assassinos aflorados.

Minha própria namorada não me reconhecia.

A 23 de Maio tinha, sobre mim, o efeito daquela poção que transformava o Dr. Jeckyll no Sr. Hyde.

Era um inequívoco caso de “o motorista e o monstro”.

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A proverbial “gota d’água” se deu em 2005. Eu saía com uma moça de Moema (zona sul de São Paulo), era uma terça-feira e deixei minha acompanhante em casa às 02h00 da manhã. Peguei a Bandeirantes e caí na 23 de Maio certo de que, àquela altura, chegaria em casa em 25 minutos – a tempo de ter uma boa noite de sono e ir trabalhar em paz no dia seguinte.

Qual não foi minha surpresa quando, na altura do Centro Cultural Vergueiro (cujos contornos são avistados da infame avenida), o trânsito se congelou abruptamente – tão abruptamente que quase me espatifei no carro da frente. Toquei o resto do caminho em primeira-segunda-primeira marchas, até a Avenida Tiradentes, sem nunca saber o que causara o congestionamento que ficara para trás...

Pois a 23 de Maio é assim, parceiro: como o Triângulo das Bermudas, seus horrores estão além da compreensão do Homem.

* * *

Desde então – acredite o leitor ou não – só transitei pela Avenida 23 de Maio em duas ocasiões. É que desenvolvi habilidades superiores às de um GPS para traçar rotas alternativas, evitando “a maldita” em prol da Marginal, do centro velho de São Paulo, da Avenida Brasil ou da Avenida do Estado. Qualquer caminho é preferível a “ela” – à avenida para o inferno.

Nem sempre, claro, consegue-se enganar o diabo: há dois meses, fui convidado a participar de um evento em uma livraria paulistana. Local: Shopping Ibirapuera, zona sul de São Paulo. Achei que, por ser um sábado, poderia fazer uma trégua com minha velha inimiga. Seria “off-records”, claro. Ninguém jamais saberia que, contrariando minhas profundas convicções, eu estava novamente aos beijos com “a maldita”. Como um alcoólatra inconseqüente que dá o primeiro gole...

Segui bem por toda a Avenida Tiradentes, cruzei o Paissandu e cheguei a esboçar um sorriso na altura do Viaduto Pedroso.... Mas eis que o trânsito se congelou abruptamente – tão abruptamente que quase me espatifei no carro da frente. Toquei o resto do caminho em primeira-segunda-primeira marchas, até o Shopping Ibirapuera, sem jamais saber o que causara o congestionamento que ficara para trás.

E, claro, perdi metade do evento...

* * *

Bem dizia minha avó: 

“Quem embarca com o diabo precisa navegar com ele.”