segunda-feira, 22 de abril de 2013

Crônica - "Meu Querido, Meu Velho, Meu Amigo"



MEU QUERIDO, MEU VELHO, MEU AMIGO...




Quando contei qual era o meu programa para uma tarde de sábado, três semanas atrás, muita gente riu.

Eu mesmo ri: as piadas são inevitáveis quando somos convidados para um aniversário de 100 anos. “Mas o aniversariante vai estar presente? Em corpo ou espírito? E em quantas partes?”

E por aí vai...

Mas a comicidade não diminuía minha afeição pelo aniversariante.

Afinal, era o “Goda”.

Grande “Goda”!

* * *

“Goda” é um diminutivo para “Godofredo” – meu bom amigo de 100 anos.

Nunca tivemos um elo de sangue, mas sempre fomos parentes. Eu explico: “Goda” vem a ser o pai da mulher desposada por meu tio-avô – a qual, diga-se de passagem, é minha tia-avó. Sacou? Sem problema: também fico confuso com os “nós” de parentesco da minha família – italiana que dói, confusa que só vendo.

* * *

No dia “D”, vi que era uma “festança”.

A família de minha tia-avó fechara um restaurante nas cercanias da Rua João Cachoeira, em São Paulo. Parecia um buffet infantil: o Brasil começava sua campanha na Copa de 2010 e, em um toque original, as mesas estavam coalhadas de mini-vuvuzelas, apitos, óculos verde-amarelos... O aparato standard de um torcedor tupiniquim.

O mix de gente era impressionante: havia crianças de colo, guris de nove anos, adolescentes com cabelos esquisitos, quarentões, cinquentões, gente de muita idade... E advogados, jornalistas, médicos e estudantes... Um zoológico humano.

Um mágico foi contratado para entreter a turma e fez números de ilusionismo em cada mesa. Quando o show começou, eu estava céptico – mas logo me peguei aplaudindo o Mandrake do Itaim Bibi, entusiasticamente. Eu não era o único empolgado: um menino gorducho, filho não-sei-de-quem e descerimoniosamente pendurado em meu ombro, arregalava os olhos e dizia “Oh!” a cada truque realizado.

No meio de tudo, contemplando a farra com as mãos entrelaçadas sobre a bengala, estava o “Goda”.

Grande “Goda”!

* * *

Ao chegar, como de hábito, beijei-o no rosto. É engraçado: por que a gente não sente vergonha em beijar outro homem quando se trata de alguém velhinho? Fico encabulado em beijar meu próprio irmão, mas, desde que me conheço por gente, sempre saudei “Goda” assim. Desta vez ele não sorriu de volta, nem soltou a velha frase de efeito que sempre reservou para mim: “você não vai parar de crescer, menino?”

Com aquela cara de bebê, redonda e serena, “Goda” olhou através de mim e notei que sua sanidade e consciência começavam a lhe faltar... Sem problema, em se tratando de um homem que completava 100 anos. Mas, pela primeira vez, me dei conta de que, talvez, ele não ficasse aqui para sempre...

* * *

E olhe que meu bom amigo foi testado nesta vida...

Na Revolução Constitucionalista de 32, deram-lhe um tiro na têmpora. Até o ano passado, “Goda” exibia a cicatriz, contando-me aventuras acontecidas em um tempo inacreditavelmente anterior a mim.

Não sei se mencionei, mas “Goda” também era chegado em uma “branquinha”. Curtia tomar sua pinguinha, fazer seu churrasquinho, mastigar sua pimentinha... Todas essas “coisas de macho” que estão sendo banidas de um mundo progressivamente mais saudável e menos divertido...

Fome de vida nunca lhe faltou. Aliás, a coisa mais comum, nos últimos tempos, era o velhinho escapar de seu apartamento para tomar um ar fresco na calçada, após driblar a vigilância da enfermeira que contrataram para pageá-lo... A mulher marcava bobeira e – pimba! – lá estava o “Goda” na rua, em seu passinho de idoso, dando um rolê pelo bairro. Sempre impecavelmente vestido e usando lenço de gaúcho no pescoço.

* * *

Quando a festa de 100 anos acabou, fui me despedir dele e tive uma surpresa: desta vez, “Goda” me reconheceu.

Apertou minha mão, bem firme, e com olhos marejados me disse: “Isto aqui não tem preço, viu, menino?”

À sua esquerda, “pencas” de netos e bisnetos chilreavam como passarinhos; à sua direita, um LCD mostrava imagens de “Goda” na juventude, no dia de seu casamento, no sítio onde ele passou os melhores momentos da vida – coisas assim. E dei-me conta de que tudo aquilo significava algo. Só não sabia o quê...

Beijei-o no rosto e disse, baixinho:

_ O senhor merece.

Se a vida fosse um filme, eu teria lhe dito que ainda tenho o canivete com cabo de madeira que ele entalhou para mim em meu aniversário de 20 anos – está na gaveta do meu criado-mudo, ao lado de outras bugigangas com valor sentimental que conservo cuidadosamente.

Bem, eu não disse.

Simplesmente deixei o lugar, mais preocupado em encontrar, no bolso do casaco, o tíquete do estacionamento onde tinha largado o carro.


* * *

Isto foi há três semanas.

E há dois dias, “Goda” morreu.

Partiu, simplesmente. Cochilava em sua poltrona predileta e, até onde sei, teve apenas um mal-estar súbito – deve ter sido “pinto” comparado à sensação de levar um tiro na testa (prova em que ele tirou nota “10”, trinta e oito anos antes de eu nascer!).

Quando soube, entendi o que o cenário da festa significava. “Captei”, por assim dizer: fora uma despedida, não um aniversário. A mais bela despedida a que um homem justo poderia almejar.

Cercado por representantes das muitas gerações que iluminou, centro das atenções em uma algazarra democrática que reuniu crianças, idosos e adolescentes, “Goda” deu adeus a este mundo cruel. E em grande estilo: revendo os best moments de sua vida na TV e curtindo um bom show de mágica.

Tenho certeza que deixou um mar de lembranças por aí. E um pedacinho delas está bem aqui, em meu criado-mudo: um canivete com cabo entalhado à mão que ganhei em um dia muito especial.

* * *

100 anos!

Ando pensando se também chegarei lá. Se soubesse que chegarei, talvez não me preocupasse tanto – nenhum problema seria “grande” demais, pois um século é tempo o bastante para qualquer ferida cicatrizar. De uma dor de amor a um tiro na testa, um centenário “cura” tudo.

Mas aí, percebi: não cabe à gente saber. Ao menos, não até chegarmos lá. Este deve ser o prêmio: a surpresa de saber que conseguimos. Fitar um rosto mais jovem e não ser capaz de exprimir a dor e a alegria embutidas em tamanha longevidade.

Se eu fosse ele, diria a mesma coisa:

“Isto não tem preço, menino.”