terça-feira, 23 de abril de 2013

Crônica - Literatura / "Easy Riders, Raging Bulls"



FAHRENHEIT 10/03




Sou um leitor constante, mas relutante. Eu explico.

Acho que o amor pelos livros se manifesta de forma semelhante à nossa maneira de lidar com as pessoas. Há indivíduos mais sociáveis, e estes são leitores prolixos; e outros mais tímidos, que escolhem cuidadosamente as obras que vão embalar suas noites insones nos próximos sete ou setenta e sete dias (o ritmo de leitura é um tópico variável, mas não é nosso assunto aqui).

Minha mãe, um ser escandalosamente sociável, é capaz de entabular conversas com qualquer tipo de pessoa – e, claro, lê livros com a mesma frequência com que amplia seu círculo de relacionamentos; já eu, um autêntico “ermitão”, tenho um gosto seletivo para a literatura. Nós dois seríamos infelizes na sociedade ditatorial de “Fahrenheit 451”, o romance de Ray Bradbury onde a polícia proíbe e queima livros em praça pública, sob o pretexto de que são nocivos à paz social (“Fahrenheit 451” é a temperatura em que o papel dos livros arde e se consome). Mas nossas maneiras de nos conectarmos com a literatura são muito diferentes.  

Da mesma forma que sou atraído para certos amores e amigos, sou atraído pela capa de um livro; um fragmento de ideia encerrado em um título; ou uma referência vaga ouvida em uma festa que – PÁ! – de repente desperta meu interesse obsessivo por certos temas. Os livros me escolhem, e não o contrário. E se isto é um clichê, sabichão, lembro-o que a boa literatura também é feita de clichês.

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Creio na prerrogativa de que os livros me escolhem, e não o contrário, porque dos best-sellers que monopolizaram a mídia nos últimos dez anos só três vieram parar em minha cabeceira: “Alta Fidelidade”, “O Código Da Vinci” e “Marley & Eu”; não por acaso, os três continham temas que me interessam particularmente. E olhe que sou o tipo “que caga letrinhas”, que não se entrega ao sono sem ler ao menos quatro ou cinco linhas bem redigidas.

Daí minha dificuldade, na infância e adolescência, em embarcar nos volumes de Machado de Assis e Érico Veríssimo (obrigatórios no Primário e Colegial). Não se pode induzir ninguém a ler – é o mesmo que um casamento arranjado. Eu queria ler Stella Car e Santos de Oliveira (autor da série de livros infanto-juvenis “A Inspetora”); ou H. G. Wells e Ian Fleming; mas a leitura desses livros não só era desencorajada, como ridicularizada. Sorte minha curtir uma transgressão: lia essas coisas escondido e sempre havia uma razoável oferta de “livros para moleques” nas lojas da Ediouro.

A garotada de hoje está mais bem-encaminhada: benditos sejam os bruxinhos “emos” de “Harry Potter”, pois eles apresentaram toda uma geração de fedelhos a essa novidade mais periclitante que qualquer iPod ou Playstation 3: uma boa trama literária. Não resta dúvida que “Harry Potter” será apenas o começo. Se for da vontade deles, e se o destino conspirar, essa molecada encontrará o espírito de Machado de Assis lá na frente da estrada. 70 km depois de Hogwarts, virando à esquerda no Posto Shell.

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Livros têm uma grande vantagem em me seduzir. Garanto que terão toda a minha atenção enquanto nosso “relacionamento” durar. Não sou um amante promíscuo; não entrego minha mente a outras ideias se um determinado romance ou biografia me satisfizer plenamente. Isto equivale a não molhar o biscoito em outras camas quando se namora. Fidelidade e comprometimento: isto é o que tenho a oferecer a um livro que corresponda à minha paixão. Ao menos no que se refere à literatura, sou o amante mais fiel que já existiu. Quanto a outros campos do interesse humano, vamos ver...

Obviamente, há quem leve a ideia de ser “escolhido” por um livro às últimas consequências. Não esqueço do bizarro diálogo que travei com um advogado em um “sebo” do Paraíso (zona centro-sul de São Paulo). O homem me garantiu, muito sério, que ao entrar em uma loja como aquela, apinhada de livros até o teto, às vezes “sentia” a vibração de uma obra há muito procurada; ela estava ali, à sua espera: um náufrago de papel perdido em um Oceano Pacífico de coleções da “Barsa” e números atrasados da “Contigo!”. “É como se o livro me pedisse socorro, me sussurrasse ‘estou aqui’; mas é impossível encontrá-lo e, assim, minha busca persiste.”

Bem... É uma exacerbação do meu ponto de vista – admito ter um parafuso a menos, mas nunca livro algum me pediu “socorro”. No entanto, a explanação curiosa ilustra o grau de comprometimento que pode existir entre um homem e um livro. Ou antes: entre um homem e as ideias contidas nos livros.

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Um sonho recorrente da ficção científica (ao menos na série Jornada nas Estrelas) são aqueles receptáculos de cristal que, no futuro vislumbrado pelos consumidores de cannabis que escrevem essas histórias, preservarão a essência do pensamento humano, séculos após o extermínio de todo um planeta ou civilização.

Pergunto-me para que sonhar com isso se a ideia já está em prática em 2010 A.D.. Os livros são esses receptáculos mágicos. Através deles – e sem entrar em transe mediúnico – pode-se “escutar” vívidos relatos de autores que há muito já se foram, mas cujas “vozes” ainda se fazem ouvir. Eles nos contam como eram as pessoas e o mundo em 1882 ou 1523; e bem antes disso, se a “Ilíada” e a “A Odisséia” forem os seus livros de cabeceira.

Não estou falando de vagas referências históricas, dessas encontradas no Google ou na Wikipedia; mas sim de cheiros, sons, perspectivas e pensamentos; de repente o presente se conecta à Era Vitoriana ou à Grécia Antiga e notamos que o Homem é um artigo pouco modernizado em milhares de anos de evolução. Particularmente, chamo isto de “viagem no tempo” na prática.

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Recentemente, fui seduzido por mais uma obra que ganhou lugar cativo em minha cabeceira: “Easy Riders, Raging Bulls – Como a Geração Sexo, Drogas e Rock’n’Roll Salvou Hollywood” (Peter Biskind, Editora Intrínseca). É um relato apaixonante sobre a Hollywood dos anos 70, que produziu “O Poderoso Chefão”, “Tubarão”, “Taxi Driver” e “O Exorcista” e que tirou o poder de produtores e executivos tacanhos e o entregou a cineastas criativos.

Vi-o de relance em uma loja das “Livrarias Curitiba” em janeiro, quando passava férias no sul, e imediatamente lembrei-me de um artigo sobre o livro publicado na “Folha de São Paulo” nos anos 1990. Demorou todo esse tempo para “Easy Riders, Raging Bulls” chegar às minhas mãos – mas, em um momento mágico (FLASH!), uma referência antiga, armazenada aleatoriamente em meu arquivo de lembranças, reagiu à capa colorida e – pimba! Nascia ali outra história de amor.

É um livro tão bom, mas tão bom, que retardei o tempo de leitura, propositalmente. É como curtir uma noite de amor há muito esperada ou saborear doce de leite do interior, mordiscando a colher devagarzinho. De fato, estou em um dilema que todo leitor obsessivo vivencia de vez em quando: não sei como me despedir do livro. Tenho a impressão que o mundo irá desmoronar quando não tiver mais o contato de suas páginas com meus dedos; quando meu “amigo” silenciar para sempre e precisar ser sepultado com honras no grande cemitério bibliográfico da minha estante.

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Minha mãe veio em meu socorro.

Com um trato social bastante superior ao meu, ela está acostumada a abrir mão das pessoas quando a separação é inevitável. Sabe que sobreviverá para conhecer outras pessoas – e que a companhia das novas pessoas será tão divertida e enriquecedora quanto a das velhas pessoas. Minha mãe me disse: “a melhor maneira de se despedir de um livro é terminá-lo em uma manhã de sábado; não de noite, quando estamos conectados a tudo o que o livro nos disse e nos fez sentir; faça-o em uma manhã de sábado – é como se despedir de um amigo no fim de uma temporada de férias. Ver o sol brilhando lá fora lhe dará a certeza que outras temporadas felizes esperam por você. Basta você se abrir para esta possibilidade.”

Pois bem: sábado que vem (10/03) me despeço de um amigo.

De um grande amigo.

Acho que você deveria conhecê-lo.