FAHRENHEIT 10/03
Sou um leitor constante, mas relutante. Eu explico.
Acho que o amor pelos livros se manifesta de forma
semelhante à nossa maneira de lidar com as pessoas. Há indivíduos mais
sociáveis, e estes são leitores prolixos; e outros mais tímidos, que escolhem
cuidadosamente as obras que vão embalar suas noites insones nos próximos sete
ou setenta e sete dias (o ritmo de leitura é um tópico variável, mas não é
nosso assunto aqui).
Minha mãe, um ser escandalosamente sociável, é capaz de
entabular conversas com qualquer tipo de pessoa – e, claro, lê livros com a
mesma frequência com que amplia seu círculo de relacionamentos; já eu, um
autêntico “ermitão”, tenho um gosto seletivo para a literatura. Nós dois
seríamos infelizes na sociedade ditatorial de “Fahrenheit 451” , o romance de Ray
Bradbury onde a polícia proíbe e queima livros em praça pública, sob o pretexto
de que são nocivos à paz social (“Fahrenheit 451” é a temperatura em que o
papel dos livros arde e se consome). Mas nossas maneiras de nos conectarmos com
a literatura são muito diferentes.
Da mesma forma que sou atraído para certos amores e amigos,
sou atraído pela capa de um livro; um fragmento de ideia encerrado em um
título; ou uma referência vaga ouvida em uma festa que – PÁ! – de repente
desperta meu interesse obsessivo por certos temas. Os livros me escolhem, e não
o contrário. E se isto é um clichê, sabichão, lembro-o que a boa literatura
também é feita de clichês.
* * *
Creio na prerrogativa de que os livros me escolhem, e não o
contrário, porque dos best-sellers que monopolizaram a mídia nos últimos dez
anos só três vieram parar em minha cabeceira: “Alta Fidelidade”, “O Código Da
Vinci” e “Marley & Eu”; não por acaso, os três continham temas que me
interessam particularmente. E olhe que sou o tipo “que caga letrinhas”, que não
se entrega ao sono sem ler ao menos quatro ou cinco linhas bem redigidas.
Daí minha dificuldade, na infância e adolescência, em
embarcar nos volumes de Machado de Assis e Érico Veríssimo (obrigatórios no
Primário e Colegial). Não se pode induzir ninguém a ler – é o mesmo que um
casamento arranjado. Eu queria ler Stella Car e Santos de Oliveira (autor da
série de livros infanto-juvenis “A Inspetora”); ou H. G. Wells e Ian Fleming;
mas a leitura desses livros não só era desencorajada, como ridicularizada.
Sorte minha curtir uma transgressão: lia essas coisas escondido e sempre havia
uma razoável oferta de “livros para moleques” nas lojas da Ediouro.
A garotada de hoje está mais bem-encaminhada: benditos sejam
os bruxinhos “emos” de “Harry Potter”, pois eles apresentaram toda uma geração
de fedelhos a essa novidade mais periclitante que qualquer iPod ou Playstation
3: uma boa trama literária. Não resta dúvida que “Harry Potter” será apenas o
começo. Se for da vontade deles, e se o destino conspirar, essa molecada
encontrará o espírito de Machado de Assis lá na frente da estrada. 70 km depois de Hogwarts,
virando à esquerda no Posto Shell.
* * *
Livros têm uma grande vantagem em me seduzir. Garanto que
terão toda a minha atenção enquanto nosso “relacionamento” durar. Não sou um
amante promíscuo; não entrego minha mente a outras ideias se um determinado
romance ou biografia me satisfizer plenamente. Isto equivale a não molhar o
biscoito em outras camas quando se namora. Fidelidade e comprometimento: isto é
o que tenho a oferecer a um livro que corresponda à minha paixão. Ao menos no
que se refere à literatura, sou o amante mais fiel que já existiu. Quanto a
outros campos do interesse humano, vamos ver...
Obviamente, há quem leve a ideia de ser “escolhido” por um
livro às últimas consequências. Não esqueço do bizarro diálogo que travei com
um advogado em um “sebo” do Paraíso (zona centro-sul de São Paulo). O homem me
garantiu, muito sério, que ao entrar em uma loja como aquela, apinhada de
livros até o teto, às vezes “sentia” a vibração de uma obra há muito procurada;
ela estava ali, à sua espera: um náufrago de papel perdido em um Oceano
Pacífico de coleções da “Barsa” e números atrasados da “Contigo!”. “É como se o
livro me pedisse socorro, me sussurrasse ‘estou aqui’; mas é impossível
encontrá-lo e, assim, minha busca persiste.”
Bem... É uma exacerbação do meu ponto de vista – admito ter
um parafuso a menos, mas nunca livro algum me pediu “socorro”. No entanto, a
explanação curiosa ilustra o grau de comprometimento que pode existir entre um
homem e um livro. Ou antes: entre um homem e as ideias contidas nos livros.
* * *
Um sonho recorrente da ficção científica (ao menos na série
Jornada nas Estrelas) são aqueles receptáculos de cristal que, no futuro
vislumbrado pelos consumidores de cannabis que escrevem essas histórias,
preservarão a essência do pensamento humano, séculos após o extermínio de todo
um planeta ou civilização.
Pergunto-me para que sonhar com isso se a ideia já está em
prática em 2010 A .D..
Os livros são esses receptáculos mágicos. Através deles – e sem entrar em
transe mediúnico – pode-se “escutar” vívidos relatos de autores que há muito já
se foram, mas cujas “vozes” ainda se fazem ouvir. Eles nos contam como eram as
pessoas e o mundo em 1882 ou 1523; e bem antes disso, se a “Ilíada” e a “A
Odisséia” forem os seus livros de cabeceira.
Não estou falando de vagas referências históricas, dessas
encontradas no Google ou na Wikipedia; mas sim de cheiros, sons, perspectivas e
pensamentos; de repente o presente se conecta à Era Vitoriana ou à Grécia
Antiga e notamos que o Homem é um artigo pouco modernizado em milhares de anos
de evolução. Particularmente, chamo isto de “viagem no tempo” na prática.
* * *
Recentemente, fui seduzido por mais uma obra que ganhou
lugar cativo em minha cabeceira: “Easy Riders, Raging Bulls – Como a Geração
Sexo, Drogas e Rock’n’Roll Salvou Hollywood” (Peter Biskind, Editora
Intrínseca). É um relato apaixonante sobre a Hollywood dos anos 70, que
produziu “O Poderoso Chefão”, “Tubarão”, “Taxi Driver” e “O Exorcista” e que
tirou o poder de produtores e executivos tacanhos e o entregou a cineastas
criativos.
Vi-o de relance em uma loja das “Livrarias Curitiba” em
janeiro, quando passava férias no sul, e imediatamente lembrei-me de um artigo
sobre o livro publicado na “Folha de São Paulo” nos anos 1990. Demorou todo
esse tempo para “Easy Riders, Raging Bulls” chegar às minhas mãos – mas, em um
momento mágico (FLASH!), uma referência antiga, armazenada aleatoriamente em
meu arquivo de lembranças, reagiu à capa colorida e – pimba! Nascia ali outra
história de amor.
É um livro tão bom, mas tão bom, que retardei o tempo de
leitura, propositalmente. É como curtir uma noite de amor há muito esperada ou
saborear doce de leite do interior, mordiscando a colher devagarzinho. De fato,
estou em um dilema que todo leitor obsessivo vivencia de vez em quando: não sei
como me despedir do livro. Tenho a impressão que o mundo irá desmoronar quando
não tiver mais o contato de suas páginas com meus dedos; quando meu “amigo”
silenciar para sempre e precisar ser sepultado com honras no grande cemitério
bibliográfico da minha estante.
* * *
Minha mãe veio em meu socorro.
Com um trato social bastante superior ao meu, ela está
acostumada a abrir mão das pessoas quando a separação é inevitável. Sabe que
sobreviverá para conhecer outras pessoas – e que a companhia das novas pessoas
será tão divertida e enriquecedora quanto a das velhas pessoas. Minha mãe me
disse: “a melhor maneira de se despedir de um livro é terminá-lo em uma manhã
de sábado; não de noite, quando estamos conectados a tudo o que o livro nos disse
e nos fez sentir; faça-o em uma manhã de sábado – é como se despedir de um
amigo no fim de uma temporada de férias. Ver o sol brilhando lá fora lhe dará a
certeza que outras temporadas felizes esperam por você. Basta você se abrir
para esta possibilidade.”
Pois bem: sábado que vem (10/03) me despeço de um amigo.
De um grande amigo.
Acho que você deveria conhecê-lo.