DROGA DE VIDA!
Reza um antigo ditado (muito perspicaz, por sinal): “quer
ver Deus dar risada? Conte-Lhe seus planos!”
Se, há alguns anos, alguém dissesse ao mantenedor deste blog
que seu destino era se tornar um hipocondríaco crônico, o escriba em questão
explodiria em gargalhadas.
Todavia, assim se fez.
Na bancada em que trabalho, vidros (no plural, mesmo) de
Novalgina (também disponível em cápsulas, embora eu prefira o efeito certeiro
da versão líquida) disputam espaço com o meu instrumental de trabalho.
Inclusive suplantando-o, admito, com certo embaraço.
* * *
Minha nova condição de hipocondríaco foi constatada por uma
nova estagiária aqui da redação – Natália no R.G., “Natasha” para nós. Outro
dia, “Natasha” veio à minha mesa buscar remédios para dor de cabeça. Algo
preocupante, pois, como se vê, tornei-me a referência local no assunto. Sou o
“Capitão Droga Raia” do pedaço; o “Homem Neosaldina”; o “Mister Saúde”, se isto
fosse uma história em quadrinhos distribuída gratuitamente em drogarias.
* * *
Logo eu – que, no passado, fui um fervoroso adepto das curas
naturais. Tinha aquela ilusão romântica de que a mente cura tudo. A meu favor
tenho a prerrogativa de nunca – nunquinha, never, jamé – ter consultado um
médico por livre e espontânea vontade. Só fiz exames de sangue e
eletrocardiograma quando me submeti a uma cirurgia, há alguns anos. Mas,
aparentemente, ninguém consegue anular o destino. O meu é ter, na velhice, uma
“farmacinha” caseira com itens catalogados em ordem alfabética. Alguns raros,
como cartelas de Dorflex dos anos 1970 ou embalagens imaculadas de pastilhas
“Mastiguinhas”, um “hit” da minha infância.
* * *
Olhando retrospectivamente, acho que tudo começou com
aqueles comprimidos de Passiflorine... Maldita a hora em que abri o vidrinho e,
seduzido pela promessa de uma noite bem-dormida e sem sobressaltos, ingeri a
droga redentora que, hoje, tem lugar cativo em meu criado-mudo.
Como em qualquer história sobre dependentes de drogas, o
primeiro Passiflorine foi a “ponta do iceberg”; depois disso (parafraseando
Renato Russo e Paulo Ricardo) “meu desejo se perdeu de mim”.
Logo descobri que tomar mais deles me fazia dormir mais
rápido e melhor. Experimentei a agonia dos dependentes na primeira noite em que
me vi sem os preciosos comprimidos. O supremo terror! Precisei apelar para três
Dorflex para chumbar no sono... Dica, aliás, que me foi dada em “off” por um
farmacêutico (que prefere ter a identidade preservada, por razões óbvias).
“Dorflex é um relaxante muscular, grandêêê”, soprou-me o sujeito de jaleco, em
tom confidencial. “Mando dois pra baixo antes de ir para a cama e durmo como um
bebê.”
* * *
Desde então, tenho essas conversas estranhas com atendentes
de farmácias. Fico sabendo de “coisas”. Participo desse estranho círculo
secreto, no qual são admitidas apenas pessoas de jaleco e dependentes. “Tem um
genérico novo na praça, a clientela tem usado muito”, diz um, sacando do bolso
a novidade; “este aqui tem o mesmo efeito do Calman, mas é sabor tutti-frutti”,
garante-me outro.
Como se vê, fui oficialmente aceito na “tchurma”. Consumidor
e cobaia desses experimentos, faço até avaliações críticas. “Olha, é quase um
tarja preta, rapaz”, sentencio, com espantosa autoridade. Ou: “Fraquinho,
fraquinho. Preço alto demais para um resultado tão medíocre.”
* * *
No fim, é tudo culpa do cigarro. E da percepção que (uma
salva de palmas para o óbvio ululante!) estou envelhecendo.
Acho que minha carcaça não passaria incólume em um “scan”
dos laboratórios Delboni ou Lavoisier. Vêm-me à mente aqueles ovos de páscoa
rejeitados pelo controle de qualidade da fábrica do Senhor Wonka, no
emblemático filme de 1973: “este aí fumou a vida toda. Atirem-no na fornalha,
Umpa-Lumpas!”
É por isso que me automedico. Mesmo sabendo que há 300 tipos
de dores de cabeça nesse mundo (os dados são da Sociedade Internacional de
Cefaleia) e que cada uma requer tratamento específico (sem mencionar a atenção
de um especialista).
Meu medo é que o especialista em questão goste tanto de mim
que queira me abrir, só para saber do que sou feito.
Eu garanto: o pobre homem vai ficar decepcionado.
P.S.: O MINISTÉRIO DA
SAÚDE ESCLARECE:
1) Dorflex: analgésicos muito populares no Brasil, utilizados para tratar desde incômodos nas costas até enxaquecas. Tornaram-se uma referência por serem os primeiros comprimidos a agregar dipirona e cafeína em sua fórmula. Apesar do que meu farmacêutico diz, não devem ser ingeridos como calmantes ou soníferos.
2) Umpa-Lumpas: pigmeus originários da Lumpalândia, região de Lumpa, uma ilha isolada do Oceano Atlântico. Umpa-Lumpas têm corpos pequenos, cabeças enormes e costumam rimar suas frases. Exemplo: “Umpa-Lumpa, doo-ba-dee-doo! I've got a perfect puzzle for you!”