CONVERSA DE BOTECO
O “Bar da Vesga” é o point mais badalado no quarteirão da editora em que trabalho. E não é pra menos: afinal, tem localização privilegiada (está a quarenta passos de nossa porta; a oitenta passos e um tombo, se você estiver “breaco”), bêbados famosos (todos nós os conhecemos) e atendimento “Vip”.
Quer um exemplo? Na última sexta-feira dei uma esticada até
lá pra comprar um doce de amendoim e uma Coca. O atual proprietário do Bar da
Vesga não tinha troco pra R$ 20,00 – mas, sem titubear, lançou-me um cordial:
“Tudo bem, você fica me devendo R$ 1,50” (o que, na prática, significa: “nunca
mais vou ver esses R$ 1,50; e se os vir, nem vou lembrar que você estava me
devendo”).
Só tomo um vinhozinho de vez em quando e acho essa lógica de
boteco desconcertante. Em minha visão “sóbria” das coisas, pensei em protocolar
o compromisso, assinar meu nome e o valor da dívida em um papel de pão – sei
lá! Mas aí estaria tripudiando da cordialidade oferecida e sendo o abstêmio
mais babaca do pedaço.
* * *
Sabe o que é gozado?
Eu, que não bebo, de certa forma ajudei a batizar o “Bar da
Vesga”. O boteco está para a região como o Holandês Voador (aquele
navio-fantasma condenado a vagar sem destino até o fim dos tempos) está para os
sete mares...
Até 2004 ou 2005, era comum os vizinhos, sem qualquer aviso
prévio ou notificação formal, avistarem suas portas abertas, uma intensa
movimentação de bebuns na calçada – e dois dias depois, tudo estar em silêncio
outra vez. “Bar? Que bar, moço? Nunca vi...”
Fenômeno estranho, mas para o qual há uma explicação
racional: o “Bar da Vesga” costumava abrir e fechar todas as semanas porque
teve vários administradores incompetentes (alguns bebiam todo o estoque da casa
antes mesmo de os primeiros fregueses entrarem no estabelecimento). Simples
assim.
* * *
O primeiro foi um japonês caladão que nunca se levantava de
seu engradado de cervejas (displicentemente transformado em banco) para saudar
o cliente recém-chegado. De braços cruzados e cara de poucos amigos, sapecava
um lacônico “Que é?”, para servir mal e não servir sempre. Isto foi por volta
de 2003, época em que comecei a trabalhar aqui.
Quando o japonês morreu (digo, “oficialmente”) começou a
“ciranda de donos” que conduziria o estabelecimento ao estado em que se
encontra hoje.
Foi em um desses períodos alternativos que entrei no bar e
dei de cara com o caolho.
* * *
Caolho, sim. Um olho perfeito e o outro inexistente. Apenas
aquela grande órbita vazia me fitando do outro lado do balcão.
Tão logo avistei o Polifemo das geladas e Bolovos (“Bolovo”
é uma iguaria típica de boteco, constituindo-se de um ovo cozido envolto em uma
“capa” de carne moída) voltei à redação e contei pra todo mundo: “Pessoal,
vocês não vão acreditar, mas o boteco da esquina foi comprado por um ciclope.”
Pronto – nascia ali uma lenda que, desde então, foi moldada
e aperfeiçoada por outros. E quando digo “lenda”, não estou exagerando nas
cores: o ciclope logo passou o bar à frente, mas sua memória permanece viva nas
cercanias da Avenida Ricardo Jafet.
As novas gerações, que nunca viram o ciclope em pessoa,
subverteram sua lembrança e passaram a se referir a ele como “o vesgo”;
confusão sacramentada quando uma senhorinha começou a atender no balcão
(provavelmente, a cozinheira que o atual proprietário contratou para preparar
os PFs – “pratos feitos” – da casa). Desde então, o “Bar da Vesga” deixou de
ser apenas um ponto comercial para se inscrever na história.
* * *
E toda sexta-feira é
lei:
“_E aí, Torelli? Vamos pro Bar da Vesga?”
“_ Bom, eu... Tenho alguns textos pra editar. Sabe como é,
a 'Moto Adventure' entra em gráfica na segunda-feira, então...”
“_Porra! O Torelli é um mala. Nunca vai com a gente pro Bar
da Vesga.”
* * *
Mentira! Às vezes eu vou, sim.
O Giglio e o Gabriel podem comprovar.
Na verdade, eu seria um cliente bem mais assíduo se não
tivesse medo de vê-lo ali, entre a porta do banheiro e a mesa de sinuca, com um
dedo apontando acusadoramente para mim: o ciclope (em carne e osso ou
espírito), condenando o mal que fiz à sua memória.
Por via das dúvidas, passo no Bar da Vesga amanhã, bem cedinho,
pra quitar minha dívida.
Ok, ok! Vou levar um Bolovo, também.
“O senhor tem troco pra R$ 20,00? Não?!”
Olha aí.
vai começar tudo de novo...
vai começar tudo de novo...