terça-feira, 23 de abril de 2013

Crônica - "Conversa de Boteco"



CONVERSA DE BOTECO




O “Bar da Vesga” é o point mais badalado no quarteirão da editora em que trabalho. E não é pra menos: afinal, tem localização privilegiada (está a quarenta passos de nossa porta; a oitenta passos e um tombo, se você estiver “breaco”), bêbados famosos (todos nós os conhecemos) e atendimento “Vip”.

Quer um exemplo? Na última sexta-feira dei uma esticada até lá pra comprar um doce de amendoim e uma Coca. O atual proprietário do Bar da Vesga não tinha troco pra R$ 20,00 – mas, sem titubear, lançou-me um cordial: “Tudo bem, você fica me devendo R$ 1,50” (o que, na prática, significa: “nunca mais vou ver esses R$ 1,50; e se os vir, nem vou lembrar que você estava me devendo”).

Só tomo um vinhozinho de vez em quando e acho essa lógica de boteco desconcertante. Em minha visão “sóbria” das coisas, pensei em protocolar o compromisso, assinar meu nome e o valor da dívida em um papel de pão – sei lá! Mas aí estaria tripudiando da cordialidade oferecida e sendo o abstêmio mais babaca do pedaço.

* * *

Sabe o que é gozado?

Eu, que não bebo, de certa forma ajudei a batizar o “Bar da Vesga”. O boteco está para a região como o Holandês Voador (aquele navio-fantasma condenado a vagar sem destino até o fim dos tempos) está para os sete mares...

Até 2004 ou 2005, era comum os vizinhos, sem qualquer aviso prévio ou notificação formal, avistarem suas portas abertas, uma intensa movimentação de bebuns na calçada – e dois dias depois, tudo estar em silêncio outra vez. “Bar? Que bar, moço? Nunca vi...”

Fenômeno estranho, mas para o qual há uma explicação racional: o “Bar da Vesga” costumava abrir e fechar todas as semanas porque teve vários administradores incompetentes (alguns bebiam todo o estoque da casa antes mesmo de os primeiros fregueses entrarem no estabelecimento). Simples assim.

* * *

O primeiro foi um japonês caladão que nunca se levantava de seu engradado de cervejas (displicentemente transformado em banco) para saudar o cliente recém-chegado. De braços cruzados e cara de poucos amigos, sapecava um lacônico “Que é?”, para servir mal e não servir sempre. Isto foi por volta de 2003, época em que comecei a trabalhar aqui.

Quando o japonês morreu (digo, “oficialmente”) começou a “ciranda de donos” que conduziria o estabelecimento ao estado em que se encontra hoje.

Foi em um desses períodos alternativos que entrei no bar e dei de cara com o caolho.

* * *

Caolho, sim. Um olho perfeito e o outro inexistente. Apenas aquela grande órbita vazia me fitando do outro lado do balcão.

Tão logo avistei o Polifemo das geladas e Bolovos (“Bolovo” é uma iguaria típica de boteco, constituindo-se de um ovo cozido envolto em uma “capa” de carne moída) voltei à redação e contei pra todo mundo: “Pessoal, vocês não vão acreditar, mas o boteco da esquina foi comprado por um ciclope.”

Pronto – nascia ali uma lenda que, desde então, foi moldada e aperfeiçoada por outros. E quando digo “lenda”, não estou exagerando nas cores: o ciclope logo passou o bar à frente, mas sua memória permanece viva nas cercanias da Avenida Ricardo Jafet.

As novas gerações, que nunca viram o ciclope em pessoa, subverteram sua lembrança e passaram a se referir a ele como “o vesgo”; confusão sacramentada quando uma senhorinha começou a atender no balcão (provavelmente, a cozinheira que o atual proprietário contratou para preparar os PFs – “pratos feitos” – da casa). Desde então, o “Bar da Vesga” deixou de ser apenas um ponto comercial para se inscrever na história.


* * *

 E toda sexta-feira é lei:

“_E aí, Torelli? Vamos pro Bar da Vesga?”

“_ Bom, eu... Tenho alguns textos pra editar. Sabe como é, a 'Moto Adventure' entra em gráfica na segunda-feira, então...”

“_Porra! O Torelli é um mala. Nunca vai com a gente pro Bar da Vesga.”


* * *

Mentira! Às vezes eu vou, sim.

O Giglio e o Gabriel podem comprovar.

Na verdade, eu seria um cliente bem mais assíduo se não tivesse medo de vê-lo ali, entre a porta do banheiro e a mesa de sinuca, com um dedo apontando acusadoramente para mim: o ciclope (em carne e osso ou espírito), condenando o mal que fiz à sua memória.

Por via das dúvidas, passo no Bar da Vesga amanhã, bem cedinho, pra quitar minha dívida.

Ok, ok! Vou levar um Bolovo, também.

“O senhor tem troco pra R$ 20,00? Não?!”

Olha aí.

 vai começar tudo de novo...