CIDADE PEQUENA
Na cidade pequena, o tempo é
diferente. Ele também norteia a vida – mas é mais elástico e menos inclemente.
A memória conversa com você – não o tortura, como acontece na cidade. Pois, aqui,
as coisas não mudam tanto; e se mudam, mudam em igual intensidade para todos: para
o rico e o vagabundo; para o bebum e o professor; para o catequista e o
pecador. Os cenários da infância estão ali, intactos. Não deram lugar a
lanchonetes “rapidinhas” ou multiplexes.
A “fita” em cartaz é a mesma desde o tempo em que você usava calças curtas. Na
época, você a estrelou – hoje, suas falas são ditas por outros atores. Mas a essência do drama é a mesma.
Na cidade pequena, os mitos
perseveram sobre a televisão. A novela não é mais importante que sua história de
amor. O seu beijo – aquele grande beijo
que você roubou da musa de sua juventude – continuará imortalizado na galeria
de contos propagados pelos populares... Sua tragédia particular, seu grande
momento heróico, continuarão a ecoar na eternidade. Ao menos na cidade pequena,
onde a biografia de cada um é pública e nossos erros e acertos realmente inspiram os que estão saindo
das fraldas. É maravilhoso, isso: na cidade pequena, todos podem ser heróis. E
com um pouco de sorte, imortais.
* * *
Na cidade pequena, os acontecimentos
são circulares: começam na praça, ganham as bocas das devotas e das solteironas
e chegam em versões fantasiosas aos infantes e idosos. E então retornam à praça
– agora como mitos, “crendices” de cidade pequena. Aqui é difícil fugir do
passado: aos 40 anos, ainda o chamam pelo apelido de infância – e não há nada
de errado nisso. Dessa forma a população o legitima como autêntico personagem
da saga local; alguém que ajudou a construir a identidade deste município.
Mesmo que a cidade grande o rechace, que você seja um “Zé-Mané” lá fora, para
eles, você sempre será alguém: seu codinome é “Quem-Quem”; “Me Esquece”; “Quita
Biscoiteira”; ou apenas “Valadares”.
Na cidade pequena, os
apelidos são mais relevantes que as redes sociais e as páginas amarelas.
Pessoas e funções se confundem e dão origem a personagens que poderiam ser
ilustrações de um folhetim. No caso de uma reforma, você procurará pelo “Sérgio
Pedreiro”; e se quiser impressionar alguém com um presente bacana, em uma
comemoração especial, é à “Marina Joias” que irá recorrer; ao comprar
mantimentos, você já sabe: biscoitos, cocadas e balas de nomes impronunciáveis são
especialidades do “Mercadinho Akida”; e o acabamento para sua reforma o espera
na “Só Gesso” – aliás, propriedade do “Valadares”.
Na cidade pequena, o maior
pecado é ser mau pagador: não só seu cheque “borracha” será exibido aos
curiosos, como sua má-reputação será espalhada aos quatro ventos. Isto será um
problema – ainda que, na cidade pequena, sempre exista uma chance de perdão. Você
poderá continuar a frequentar o “Bar do Alceu”, mas, lembre-se: fiado só
amanhã.
* * *
Na cidade pequena, o lixão e
o cemitério dividem o mesmo território. Um muro caiado de branco separa os
restos mortais de quem ali viveu das embalagens vazias de óleo de cozinha,
papel higiênico, bolachas e aguardente. O fim é sempre melancólico – em Nova York ou na cidade
pequena. Mas a gente daqui passa a vida se preparando para isso, em íntima
comunhão com a morte (morte da terra; dos animais; dos recém-nascidos que não
vingaram). E sem um traço de morbidez, sabe o que a espera nesta ou na próxima
estação. O que importa é que, até a última colheita, muitos pores-do-sol vão
decorar esta paisagem... E como lhe explicará pacientemente qualquer habitante
da cidade pequena: um pôr-do-sol nunca é igual a outro.
Longa vida à cidade pequena!
À cidade pequena que vejo
como um borrão fugidio pela janela do carro. Antes tivesse tempo de apear, de
trocar um dedo de prosa com o “Valadares” ou de saber mais sobre a história deste
município. Talvez o faça no ano que vem. Talvez o faça – se a última colheita
não me apanhar antes. Se for o caso, toque para a cidade pequena e faça isto
por mim. Não vou lhe dar o nome ou as coordenadas: você saberá que achou o lugar
quando avistar a cidade pequena.
Não deixe de provar o bolo
de fubá, a torta de paçoca gelada, a queijadinha, o doce de leite granulado... E
não deixe de se levantar na frente das senhoras! Na cidade pequena, falta de
educação é como cheque devolvido: pode trazer uma má-fama que ecoará por toda a
eternidade.