segunda-feira, 22 de abril de 2013

Crônica - "O Mercado da Morte"


O MERCADO DA MORTE




Não sou expert em vendas – longe disso. De fato, se dependesse do meu “tino comercial” pra viver, já estaria morando debaixo da ponte.

Sei que sou um péssimo vendedor porque sou um péssimo comprador. Não pechincho. Não negocio. Não pesquiso. Vou lá, compro e “tchau”. Por isso acho fascinante a arte de vender.

Meu pai foi um grande vendedor. Uma prova incontestável de que o talento não migra de geração para geração. É um dom pessoal e intransferível. Ao ver meu pai negociar, eu abria a boca, pasmo. “Como ele faz isso? Que segurança! Ele tem controle absoluto da situação, apesar de querer tanto este produto... Como é possível?!”

“Seu” Mário (meu pai) era um vendedor em escala industrial. Representou algumas das maiores firmas de produtos químicos (inclusive a britânica ICI – Imperial Chemical Industries, um baluarte do segmento). Era uma “fera” para comprar e vender. Comprovei isto vendo o meu velho “em ação” nos hiper-mercados, quando utilizava seu “superpoderes” de forma, digamos, extra-oficial. Quem vende produtos químicos em larga escala, vende qualquer coisa.

E mesmo assim, há artigos de consumo que desafiam até o melhor dos vendedores.

Túmulos, por exemplo.

* * *

Você já comprou seu túmulo?

Eu também não. Mas acredite: há quem fature uma grana preta com a morte. É um esquema cujos tentáculos abarcam a indústria farmacêutica, as fábricas de equipamentos hospitalares e (o ralo onde tudo se afunila) os “papa-defuntos”.

Que profissão tétrica, meu Deus! E desde que o mundo é mundo, eles estão aí: peças fundamentais no ciclo de morte e renascimento que garante a estadia de todos nós neste planeta superlotado.

Como terá sido 2009 para os fabricantes de caixões? E para os “especuladores da morte”, que também existem? Afinal, acabo de ler o seguinte anúncio no classificados.com.br: “vendo jazigo com dez gavetas no Getsemani – SP.”

Será que a crise afetou o setor? Acho que não: pode chover canivetes ou desmoronar o Capitalismo, mas certas coisas sempre têm demanda: sexo, comida e caixões. Você conhece alguém que deixou de transar (nem que seja com a própria mão)? Que parou de se alimentar? Que “abdicou de morrer”? Jesus não vale – até Ele ocupou um jazigo, mesmo que por um curto período de tempo, antes de ressuscitar e subir aos Céus. Abençoado seja José de Arimatéia, amigão de Nosso Senhor que, precavido, tinha seu próprio sepulcro e o emprestou ao Filho do Homem.

Está na Bíblia, eu juro!

Não é conversa de vendedor.

* * *

E ser filho de papa-defuntos? Considere a dificuldade.

Imagine só, naquele infame “dia das profissões”, no primário, ter que explicar aos coleguinhas como seu pai ganha a vida? “Basicamente, enterrando os pais de vocês”, diria um herdeiro de funerária com senso de humor.

Se bem que senso de humor não é característica desejável neste negócio. Você confiaria em um gerente de funerária que o recebesse contando piadas? Ou imitando o Silvio Santos?

“_Má-má, ôôôi! Que cara de velório é essa? Morreu alguém? Ra-raiii!”

“_Sim... Meu pai.”

Aí não dá, né?

* * *

Sei apenas que os velórios (e participei de um monte, ainda que como mero espectador) são rituais dissimulados de sadismo. Para que tudo aquilo? As velas, as flores, o cheiro de sala de taxidermia... Para que submeter a família do falecido a essas horas de desgaste, tristeza e desespero? Apenas para que alguns curiosos, em um raio de 20 km do velório, possam dar uma última “espiadinha” no morto? Além de matar uma tarde de trabalho, claro...

Tenha certeza, meu irmão: velórios dão muito menos “Ibope” aos sábados.

* * *

Paradoxalmente essas cerimônias acabam sendo engraçadas. Minha máxima, extraída da própria experiência, é a seguinte: os dias em que perdemos nossos entes queridos são, ao mesmo tempo, os mais hilariantes e tristes de nossas vidas. Um estranho misto de sensações provocado, certamente, pela tensão nervosa e o torpor da perda.

Revemos velhos amigos, damos gargalhadas na antessala do velório, somos confortados, abraçados e acolhidos – e ao mesmo tempo, quando a “ficha” cai, uma depressão bombástica se instala em nossos ombros. Experimentamos uma solidão terrível quando percebemos que, ao dispersar da massa, teremos que encarar sozinhos as conseqüências do que aconteceu. Em casa...

* * *

Sábias são as comunidades brasileiras que encaram a morte sob outra perspectiva: com um misto de festa e de reverência. Certa vez, em uma cidadezinha no interior do Paraná, me diverti ouvindo a garotada descrever a “noite de ronda aos velórios”. Não se tratava de leviandade, muito menos de maldade – eles sequer tinham malícia para isso. Viam a morte com a medida de respeito que perdemos na cidade (acreditavam em espíritos e no sobrenatural, coisas que, em centros urbanos, são apenas material para filmes de terror).

Reverenciavam os mortos e suas famílias, sim – mas, espertos, iam aos velórios realizados de madrugada (nos rincões do país, parte deles ainda é feita em casa; as salas são temporariamente transformadas em câmaras mortuárias para que o morto possa ser velado) para “filar petiscos” e rir do inevitável – rir do que espera por todos nós. Não debochavam do defunto ou da desgraça. Debochavam das próprias mortalidades.

* * *

No fundo, essas pessoas é que estão certas: funerais são mesmo situações tragicômicas. Afinal, envolvem protagonistas nervosos, reações imprevistas e todo tipo de gafes. Eu mesmo, certa vez, perambulei pelo velório errado durante minutos intermináveis até descobrir que o “meu morto” estava na câmara ao lado.

Coisas da vida – coisas da morte.