O MERCADO DA MORTE
Não sou expert em vendas – longe disso. De fato, se dependesse do meu “tino comercial” pra viver, já estaria morando debaixo da ponte.
Sei
que sou um péssimo vendedor porque sou um péssimo comprador. Não pechincho. Não
negocio. Não pesquiso. Vou lá, compro e “tchau”. Por isso acho fascinante a
arte de vender.
Meu
pai foi um grande vendedor. Uma prova incontestável de que o talento não migra de
geração para geração. É um dom pessoal e intransferível. Ao ver meu pai negociar,
eu abria a boca, pasmo. “Como ele faz isso? Que segurança! Ele tem controle
absoluto da situação, apesar de querer tanto este produto... Como é possível?!”
“Seu”
Mário (meu pai) era um vendedor em escala industrial. Representou algumas das maiores
firmas de produtos químicos (inclusive a britânica ICI – Imperial Chemical
Industries, um baluarte do segmento). Era uma “fera” para comprar e vender.
Comprovei isto vendo o meu velho “em ação” nos hiper-mercados, quando utilizava
seu “superpoderes” de forma, digamos, extra-oficial. Quem vende produtos
químicos em larga escala, vende qualquer coisa.
E
mesmo assim, há artigos de consumo que desafiam até o melhor dos vendedores.
Túmulos,
por exemplo.
* * *
Você
já comprou seu túmulo?
Eu
também não. Mas acredite: há quem fature uma grana preta com a morte. É um
esquema cujos tentáculos abarcam a indústria farmacêutica, as fábricas de equipamentos
hospitalares e (o ralo onde tudo se afunila) os “papa-defuntos”.
Que
profissão tétrica, meu Deus! E desde que o mundo é mundo, eles estão aí: peças
fundamentais no ciclo de morte e renascimento que garante a estadia de todos
nós neste planeta superlotado.
Como
terá sido 2009 para os fabricantes de caixões? E para os “especuladores da
morte”, que também existem? Afinal, acabo de ler o seguinte anúncio no classificados.com.br: “vendo jazigo com dez
gavetas no Getsemani – SP.”
Será
que a crise afetou o setor? Acho que não: pode chover canivetes ou desmoronar o
Capitalismo, mas certas coisas sempre têm demanda: sexo, comida e caixões. Você
conhece alguém que deixou de transar (nem que seja com a própria mão)? Que
parou de se alimentar? Que “abdicou de morrer”? Jesus não vale – até Ele ocupou
um jazigo, mesmo que por um curto período de tempo, antes de ressuscitar e
subir aos Céus. Abençoado seja José de Arimatéia, amigão de Nosso Senhor que, precavido,
tinha seu próprio sepulcro e o emprestou ao Filho do Homem.
Está
na Bíblia, eu juro!
Não
é conversa de vendedor.
* * *
E
ser filho de papa-defuntos? Considere a dificuldade.
Imagine
só, naquele infame “dia das profissões”, no primário, ter que explicar aos coleguinhas
como seu pai ganha a vida?
“Basicamente, enterrando os pais de vocês”, diria um herdeiro de funerária com
senso de humor.
Se
bem que senso de humor não é característica desejável neste negócio. Você
confiaria em um gerente de funerária que o recebesse contando piadas? Ou imitando
o Silvio Santos?
“_Má-má,
ôôôi! Que cara de velório é essa? Morreu alguém? Ra-raiii!”
“_Sim...
Meu pai.”
Aí
não dá, né?
* * *
Sei
apenas que os velórios (e participei de um monte, ainda que como mero espectador)
são rituais dissimulados de sadismo. Para que tudo aquilo? As velas, as flores,
o cheiro de sala de taxidermia... Para que submeter a família do falecido a
essas horas de desgaste, tristeza e desespero? Apenas para que alguns curiosos,
em um raio de 20 km
do velório, possam dar uma última “espiadinha” no morto? Além de matar uma
tarde de trabalho, claro...
Tenha
certeza, meu irmão: velórios dão muito menos “Ibope” aos sábados.
* * *
Paradoxalmente
essas cerimônias acabam sendo engraçadas. Minha máxima, extraída da própria
experiência, é a seguinte: os dias em que perdemos nossos entes queridos são, ao
mesmo tempo, os mais hilariantes e tristes de nossas vidas. Um estranho misto
de sensações provocado, certamente, pela tensão nervosa e o torpor da perda.
Revemos
velhos amigos, damos gargalhadas na antessala do velório, somos confortados, abraçados
e acolhidos – e ao mesmo tempo, quando a “ficha” cai, uma depressão bombástica
se instala em nossos ombros. Experimentamos uma solidão terrível quando percebemos
que, ao dispersar da massa, teremos que encarar sozinhos as conseqüências do que
aconteceu. Em casa...
* * *
Sábias
são as comunidades brasileiras que encaram a morte sob outra perspectiva: com um
misto de festa e de reverência. Certa vez, em uma cidadezinha no interior do
Paraná, me diverti ouvindo a garotada descrever a “noite de ronda aos
velórios”. Não se tratava de leviandade, muito menos de maldade – eles sequer
tinham malícia para isso. Viam a morte com a medida de respeito que perdemos na
cidade (acreditavam em espíritos e no sobrenatural, coisas que, em centros
urbanos, são apenas material para filmes de terror).
Reverenciavam
os mortos e suas famílias, sim – mas, espertos, iam aos velórios realizados de madrugada
(nos rincões do país, parte deles ainda é feita em casa; as salas são
temporariamente transformadas em câmaras mortuárias para que o morto possa ser
velado) para “filar petiscos” e rir do inevitável – rir do que espera por todos
nós. Não debochavam do defunto ou da desgraça. Debochavam das próprias
mortalidades.
* * *
No
fundo, essas pessoas é que estão certas: funerais são mesmo situações
tragicômicas. Afinal, envolvem protagonistas nervosos, reações imprevistas e
todo tipo de gafes. Eu mesmo, certa vez, perambulei pelo velório errado durante
minutos intermináveis até descobrir que o “meu morto” estava na câmara ao lado.
Coisas
da vida – coisas da morte.