segunda-feira, 22 de abril de 2013

Crônica - Vida de Solteiro



O JARDIM SECRETO




Duas crianças corriam pelas alamedas da cidade-fantasma – uma menina de nove anos e seu irmãozinho, um toco de gente. De longe, eu podia ouvir os gritinhos do menino – ele se divertia dando sucessivas “voltas” no escorregador do playground.


Não sei quem eram as crianças. Mas a cidade-fantasma eu conheço bem: é o condomínio para onde me mudo dentro de alguns meses. Peguei as chaves do apartamento há duas semanas. Deveria estar eufórico como as crianças, filhas não-sei-de-quem e, por enquanto, únicas transeuntes nas passarelas do empreendimento. Às vezes acho que estou – mas aí penso de novo e me certifico: não estou.

* * *

Olhe só – não me leve a mal: realizar o sonho da casa própria é mesmo um prazer orgástico. E no meu caso, encerra um paralelo com a ideia de comprar um carro novo ou – regredindo ao tempo em que tinha a idade dessas crianças – ganhar um brinquedo de Natal. Sempre gostei de geringonças eletrônicas – e qual não foi minha surpresa ao descobrir que, como um som Estéreo ou o meu velho Ferrorama, apartamentos novos vêm com um “manual do usuário”. Eles ensinam aos garotos que já fazem a barba e pagam IPTU a ligar, operar e manter seus “brinquedos”.

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Não tenho ideia do que brincavam as crianças porque desconheço seus referenciais. Pode ser de “Crepúsculo” ou “Cavaleiros do Zodíaco” (se é que isso ainda existe); certamente não era de “casinha”. Sei que não era porque havia um menino na cena – e nada é mais humilhante para um menino do que “brincar de casinha”. Mas seja do que for que brincavam, pareciam se divertir à beça.

Lembrei-me de uma tarde abafada, há muito tempo, na Rua Conselheiro Brotero (São Paulo – SP). Estávamos na garagem de um prédio residencial, eu e meu amigo de infância (aliás, ainda meu amigo), Rogério Berni. Passamos horas brincando de “Viagem ao Centro da Terra” (a ideia foi minha, pois sempre adorei uma história de ficção científica).

Averiguávamos as colunas da garagem em busca de inscrições deixadas pelo Professor Arne Saknussen (que nos antecedera naquela perigosa jornada às entranhas do planeta – tchan-tchan-tchan-tchan!). E enquanto as horas passavam céleres, enfrentávamos dinossauros (os carros estacionados) e homens primitivos do mundo subterrâneo (uns garotos mais velhos que vagavam por ali).

Só encontramos o caminho de volta à superfície às 16h30, quando a avó do Rogério mandou nos chamar para um café da tarde sortido – o tipo de café da tarde que avós preparam para gente miúda: calórico, irresponsável, irresistível.

Tenho certeza que as crianças do meu condomínio também ganharam um bom café da tarde naquele dia. São filhos dos primeiros condôminos a se mudar para lá e têm, em alguma das torres, uma mãe zelosa que os espera com a mesa farta. Chá, chocolates, bolacha Negresco...

O Céu é o limite!

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Já é hora de dizer que eu não era eu o único a observar as crianças. Acompanhavam-me meu irmão e minha mãe. Só agora foram conhecer meu apartamento – e embora eu não lhes tenha pedido conselho algum durante todo esse tempo, fiquei um pouquinho feliz que tenham aprovado minhas decisões.

_ Bem, considerando seu refinamento e personalidade, fico surpreso que não seja um muquifo. – disse meu irmão, em parte brincando, em parte a sério. _ Mas por via das dúvidas vamos dizer às pessoas que seu prédio fica na Pompeia, não na Freguesia do Ó.

Meu irmão é um cara legal, mas pertence a outra galáxia – haja vista mora nos Jardins (é por essas e outras que o chamo de “O Príncipe”; sacaneando-o, é claro).

_ Certo, mas tem um problema nesse seu plano idiota. – rebati, dando-lhe um cascudo de leve na orelha. _ Minha rua é uma travessa da Avenida Nossa Senhora do Ó. Então, quando você e seus amigos chiques vierem me visitar, vou cobrir a placa com cartolina e escrever por cima: “Avenida Pompeia”. Está bom assim?

E com o placar fechado em “1 X 1”, subimos para ver o meu “castelo” de sessenta e poucos metros quadrados.

Depois disso, não vi mais as crianças.

* * *

Se eu deveria estar feliz como os guris que zanzavam de lá para cá na cidade-fantasma, por que não estou?

Ora, porque crescer é reincidir no erro de pensar demais até que seja muito tarde. E isto, como lhe diria qualquer criança, é uma tremenda burrice.

Quando vejo a cidade-fantasma não vejo um playground. Vejo a necessidade de manter meu emprego até quitar a dívida com o banco. Além disso, preciso pagar a luz que mantém esse parque de diversões em funcionamento. Eu deveria é estar pensando se vou ter uma vizinha gostosa; se vou trepar como um coelho em minha nova cama de casal; e na solidão e quietude que terei quando estiver de mal com o mundo (o que acontece com certa frequência, admito).

Mas, não: penso na valorização do empreendimento quando o metrô chegar até ali – já está chegando; assim, poderei vendê-lo bem. Meu pessimismo crônico-defensivo é tamanho que já decidi: esta não será minha morada definitiva – não vou morrer ali. “Afinal, não existe vizinhança perfeita”, digo a mim mesmo, sorumbático. “Não se apegue: venda essa joça ao menor sinal de problema.”

Também fico pensando – às vezes a sério, às vezes brincando – em quais serão minhas chances de sobrevivência se um avião colidir com a Torre 4 (veja, vou morar no último andar). E – como não? – em qual é a sensação de morrer queimado, visto que esta será minha melhor opção em caso de incêndio (a outra é me estatelar no solo, vísceras por todos os lados). Mas não se alarme: penso e digo essas coisas e me divirto, o que significa que não me assustam de verdade.

Acima de tudo, penso em como gostaria de mostrar este apartamento ao meu pai. Que não está mais aqui, mas que se divertiria muito “usando” meu novo brinquedo nessa fase de reformas, ajustes e compras de móveis planejados. Posso até imaginá-lo jogando conversa fora com o porteiro – posso imaginá-lo contrariando cada uma das minhas decisões até me deixar puto nas calças (como frequentemente acontecia). E o pior é que, hoje, tudo o que posso fazer é imaginar.

* * *

Eu deveria fazer como as crianças: olhar a cidade-fantasma e ver apenas um imenso playground. Exercitar o egoísmo, essa dádiva exclusiva dos inocentes, dos solteiros e dos vilões, e simplesmente curtir o momento. Quer saber? Ainda há tempo para isso. Portanto, se você me der licença, tenho que ir andando. É hora de calçar minhas botas e pegar meus apetrechos.

Arne Saknussen deixou algumas mensagens para mim. Estão entalhadas no concreto da cidade-fantasma e tenho que segui-las. As pistas começam na garagem e conduzem ao topo da Torre 4, onde me esperam um jardim secreto e a possibilidade de uma nova vida. Os amores que estou predestinado a viver, os prazeres que não conheço e as emoções que ainda não sei descrever.

E se você quiser vir comigo, venha.

Vai ser um barato.