O JARDIM SECRETO
Duas crianças corriam pelas alamedas da cidade-fantasma – uma menina de nove anos e seu irmãozinho, um toco de gente. De longe, eu podia ouvir os gritinhos do menino – ele se divertia dando sucessivas “voltas” no escorregador do playground.
Não sei quem eram as crianças. Mas a cidade-fantasma eu
conheço bem: é o condomínio para onde me mudo dentro de alguns meses. Peguei as
chaves do apartamento há duas semanas. Deveria estar eufórico como as crianças,
filhas não-sei-de-quem e, por enquanto, únicas transeuntes nas passarelas do
empreendimento. Às vezes acho que estou – mas aí penso de novo e me certifico:
não estou.
* * *
Olhe só – não me leve a mal: realizar o sonho da casa
própria é mesmo um prazer orgástico. E no meu caso, encerra um paralelo com a
ideia de comprar um carro novo ou – regredindo ao tempo em que tinha a idade
dessas crianças – ganhar um brinquedo de Natal. Sempre gostei de geringonças
eletrônicas – e qual não foi minha surpresa ao descobrir que, como um som
Estéreo ou o meu velho Ferrorama, apartamentos novos vêm com um “manual do
usuário”. Eles ensinam aos garotos que já fazem a barba e pagam IPTU a ligar,
operar e manter seus “brinquedos”.
* * *
Não tenho ideia do que brincavam as crianças porque
desconheço seus referenciais. Pode ser de “Crepúsculo” ou “Cavaleiros do
Zodíaco” (se é que isso ainda existe); certamente não era de “casinha”. Sei que
não era porque havia um menino na cena – e nada é mais humilhante para um
menino do que “brincar de casinha”. Mas seja do que for que brincavam, pareciam
se divertir à beça.
Lembrei-me de uma tarde abafada, há muito tempo, na Rua
Conselheiro Brotero (São Paulo – SP). Estávamos na garagem de um prédio
residencial, eu e meu amigo de infância (aliás, ainda meu amigo), Rogério
Berni. Passamos horas brincando de “Viagem ao Centro da Terra” (a ideia foi
minha, pois sempre adorei uma história de ficção científica).
Averiguávamos as colunas da garagem em busca de inscrições
deixadas pelo Professor Arne Saknussen (que nos antecedera naquela perigosa
jornada às entranhas do planeta – tchan-tchan-tchan-tchan!). E enquanto as
horas passavam céleres, enfrentávamos dinossauros (os carros estacionados) e
homens primitivos do mundo subterrâneo (uns garotos mais velhos que vagavam por
ali).
Só encontramos o caminho de volta à superfície às 16h30,
quando a avó do Rogério mandou nos chamar para um café da tarde sortido – o
tipo de café da tarde que avós preparam para gente miúda: calórico,
irresponsável, irresistível.
Tenho certeza que as crianças do meu condomínio também
ganharam um bom café da tarde naquele dia. São filhos dos primeiros condôminos
a se mudar para lá e têm, em alguma das torres, uma mãe zelosa que os espera
com a mesa farta. Chá, chocolates, bolacha Negresco...
O Céu é o limite!
* * *
Já é hora de dizer que eu não era eu o único a observar as
crianças. Acompanhavam-me meu irmão e minha mãe. Só agora foram conhecer meu
apartamento – e embora eu não lhes tenha pedido conselho algum durante todo
esse tempo, fiquei um pouquinho feliz que tenham aprovado minhas decisões.
_ Bem, considerando seu refinamento e personalidade, fico
surpreso que não seja um muquifo. – disse meu irmão, em parte brincando, em
parte a sério. _ Mas por via das dúvidas vamos dizer às pessoas que seu prédio
fica na Pompeia, não na Freguesia do Ó.
Meu irmão é um cara legal, mas pertence a outra galáxia –
haja vista mora nos Jardins (é por essas e outras que o chamo de “O Príncipe”;
sacaneando-o, é claro).
_ Certo, mas tem um problema nesse seu plano idiota. –
rebati, dando-lhe um cascudo de leve na orelha. _ Minha rua é uma travessa da
Avenida Nossa Senhora do Ó. Então, quando você e seus amigos chiques vierem me
visitar, vou cobrir a placa com cartolina e escrever por cima: “Avenida
Pompeia”. Está bom assim?
E com o placar fechado em “1 X 1” , subimos para ver o meu
“castelo” de sessenta e poucos metros quadrados.
Depois disso, não vi mais as crianças.
* * *
Se eu deveria estar feliz como os guris que zanzavam de lá
para cá na cidade-fantasma, por que não estou?
Ora, porque crescer é reincidir no erro de pensar demais até
que seja muito tarde. E isto, como lhe diria qualquer criança, é uma tremenda
burrice.
Quando vejo a cidade-fantasma não vejo um playground. Vejo a
necessidade de manter meu emprego até quitar a dívida com o banco. Além disso,
preciso pagar a luz que mantém esse parque de diversões em funcionamento. Eu
deveria é estar pensando se vou ter uma vizinha gostosa; se vou trepar como um
coelho em minha nova cama de casal; e na solidão e quietude que terei quando
estiver de mal com o mundo (o que acontece com certa frequência, admito).
Mas, não: penso na valorização do empreendimento quando o
metrô chegar até ali – já está chegando; assim, poderei vendê-lo bem. Meu
pessimismo crônico-defensivo é tamanho que já decidi: esta não será minha
morada definitiva – não vou morrer ali. “Afinal, não existe vizinhança
perfeita”, digo a mim mesmo, sorumbático. “Não se apegue: venda essa joça ao
menor sinal de problema.”
Também fico pensando – às vezes a sério, às vezes brincando
– em quais serão minhas chances de sobrevivência se um avião colidir com a
Torre 4 (veja, vou morar no último andar). E – como não? – em qual é a sensação
de morrer queimado, visto que esta será minha melhor opção em caso de incêndio
(a outra é me estatelar no solo, vísceras por todos os lados). Mas não se
alarme: penso e digo essas coisas e me divirto, o que significa que não me
assustam de verdade.
Acima de tudo, penso em como gostaria de mostrar este
apartamento ao meu pai. Que não está mais aqui, mas que se divertiria muito
“usando” meu novo brinquedo nessa fase de reformas, ajustes e compras de móveis
planejados. Posso até imaginá-lo jogando conversa fora com o porteiro – posso
imaginá-lo contrariando cada uma das minhas decisões até me deixar puto nas
calças (como frequentemente acontecia). E o pior é que, hoje, tudo o que posso
fazer é imaginar.
* * *
Eu deveria fazer como as crianças: olhar a cidade-fantasma e
ver apenas um imenso playground. Exercitar o egoísmo, essa dádiva exclusiva dos
inocentes, dos solteiros e dos vilões, e simplesmente curtir o momento. Quer
saber? Ainda há tempo para isso. Portanto, se você me der licença, tenho que ir
andando. É hora de calçar minhas botas e pegar meus apetrechos.
Arne Saknussen deixou algumas mensagens para mim. Estão
entalhadas no concreto da cidade-fantasma e tenho que segui-las. As pistas
começam na garagem e conduzem ao topo da Torre 4, onde me esperam um jardim
secreto e a possibilidade de uma nova vida. Os amores que estou predestinado a
viver, os prazeres que não conheço e as emoções que ainda não sei descrever.
E se você quiser vir comigo, venha.
Vai ser um barato.